Dias desses, ali pelas seis da manhã, eu e minha mãe papeávamos. Como de costume, contava para elas minhas aventuras e desventuras recentes. Ela, como sempre, na equipe de apoio a passar belíssimos panos para sua caçula. Adoro vê-la justificar meus conscientes equívocos, mesmo que eu nunca tenha pedido essa defesa. Sei que ela se sente bem em me defender, deixo assim. Uma mãe precisa de coisas emocionais que nunca serão compreendidas, sabe?!
Seguindo, enquanto filha da minha mãe, não há nada que entre nós que tenha medida, somos destemperadas no amor e na liberdade. Tudo que a vida me entrega em experiência é tudo que compartilho com ela, dada a proporção dos fatos e compostura que seu cargo de matriarca exige de respeito. Foi com ela que aprendi a falar e, também, a calar.
Minha mãe é uma dessas criaturas poucas que acumula anos — bem mais de 70, inclusive —, mas que a modernidade é inerente à sua personalidade. Ela já nasceu pronta para o que viria, penso. Com seus olhos de luneta, sempre viu o infinito da humanidade e trouxe para dentro de casa o respeito e a proteção ao mundo e suas pessoas diversas.
Em casa, especialmente com minha mãe, nunca existiu tabu. Tudo podia e devia ser dito. Tudo era naturalizado e fortalecido como algo comum e dos dias. Nada era insolúvel.
Em suma, nunca me senti constrangida em sua presença e isso diz muito sobre ela
Amo pensar que fui criada por uma ‘modernista’ e amo ainda mais dedicar a ela a forma como crio a minha filha. Vejo-a orgulhosa do trato que entrego à Pilar, pois em nossa realidade não há violências socialmente consentidas, não há jogar sobrecargas dos nossos traumas sobre as costas da criança, não há incentivos a comportamentos padrões nocivos. O que há, e muito, é colo e respeito às individualidades.
Ter referência de liberdade dentro de casa desde que abri os olhos me fez ter forças para me embrenhar na vida que nunca me foi permitida, abrir portas na voadora e me pôr ali como merecedora.
Hoje, eu, mãe da minha filha, me ajeito no espelho de minha mãe. A vejo, me enxergo, tenho exemplo de força e coragem, ao passo que aprendi com ela que criar gente é ser paciente e assumir a maturidade quando a ocasião pede. Muito além de comida e roupas, suprir necessidades tem a ver com dar ouvidos e palavras, abraços e tempo.
Hoje, ao olhar para minha cria, me construo em sua sabedoria de menina e, com a humildade que herdei da minha mãe, sei que ensino o que aprendi na mesma medida em que aprendo com seus sentires e profundas interpretações do mundo lindo da infância que não tenho mais acesso.
Respiro profundamente buscando achar dentro de mim uma pessoa melhor para ser a mãe da Pilar e a filha da Dona Divina. Suspiro aliviada sabendo que estou tentando. Aparentemente, viver é acumular suspiros.