Eu adoro passagens de ano. Amo as rupturas com o passado e os iniciares que a data nos entrega. Amo as idas e as vindas do tempo e todas as possibilidades inculcadas ali. Não sou dada a grandes rituais, mas, geralmente, ao soar da meia-noite, sem credo mas com muita fé, faço uma oração e a lanço ao universo. Peço e agradeço, com a humildade de quem sabe que muito tem.
No último dia 31 não foi diferente, exceto que, além de pedir e agradecer, eu tinha um sepultamento para conduzir. Alegremente, levei ao túmulo a mulher que fui desde sempre, suas carências e confusões, suas dores e traumas, e, principalmente, suas infinitas dificuldades. O caixão estava pesado, acredite.
Já tive mudanças profundas em mim ao longo dos meus quase 35 anos, no entanto nada semelhante ao que aconteceu comigo em 2021. Nada que culminasse no encerramento definitivo de tudo que fui. Era inevitável, a Sandra do passado precisou morrer para que a nova viesse à vida. De toda forma, como em toda morte, ela não se foi por inteira. Deixou seus pedaços por aí e eu gosto de ter suas lembranças a vagar pelos espaços que me habitam.
Velar alguém nas festas de final de ano, mesmo que simbolicamente, é pesado e me trouxe à mente a expressão Enterro dos Ossos. Sabe aquele almoço divino do dia posterior à noite de Natal, onde devoramos o que sobrou da ceia? Então, essa refeição recebe esse curioso nome. Curioso e um tanto óbvio se pensarmos bem. Mas, vejo essa expressão, para além de tudo, adonada de uma profundidade de significado descomunal.
Estudando um pouco, vi que as festas pós Carnaval, àquelas que adentram ao início da Quaresma também recebem esse nome. Sumariamente, em tradução sociocultural livre, Enterro dos Ossos é a festa das sobras, a festa do que foi bom – ainda é –, mas precisa acabar. De um jeito peculiar, enterrar os ossos tem a ver com meu estado de espírito nesse momento. Sigo comemorando o que sobrou, regozijando ao que foi bom, descartando o que não me alimenta mais e inventando um novo modo de devorar as boas sobras de mim, temperando a refeição da vida com o novo ser que adentrou à alma.
Enterrar os ossos quer dizer que já comemos a carne, quer dizer que tiramos proveito do que era bom. As sobras de tudo, mesmo que descartáveis, nos contam histórias do que foi feliz, mas não é mais. Tudo que é bom ou ruim deixa sobras, essa é a regra. Cabe a nós carregá-las como memórias leves ou sobrepeso prestes a apodrecer.
Mais que enterrar as sobras do meu passado, eu decido sepultá-las em celebração ao que eu fui, entregando-as em sacrifício aos deuses como agradecimento ao que estou me tornando.