Foi uma clarividência divina que culminou na frase célebre de Jean Paul Sartre, lá atrás, no século passado. Parece muito tempo passado pensar na vida e suas construções tão idas. Parece, sim, mas nem é tanto tempo se ainda nos encontramos no mesmo lugar de afogamento. A frase em questão é: o inferno são os outros, retirada da peça Entre quatro paredes, e fala mais do hoje que do ontem, acredite.
De fato, o inferno é qualquer coisa, mas não pode ser o eu. Será? Pois, depois de 34 anos vividos bem, em possessão cotidiana por emoções de toda sorte e dificuldades das mais humanas impossíveis, cá estou afirmando que Sartre leu o futuro e lançou a braba. É isso, caríssimos, a concepção de que nossos problemas todos, ordens aleatórias, estão enraizados na fértil terra alheia é de uma sabedoria que só pode ser concebida através da observação atenta e profunda dos nossos semelhantes. O outro é o espelho em que me vejo, admiro ou refugo.
Quem nunca julgou pessoas aleatórias sem ao menos saber o porquê de se incomodar com uma vida que não é a sua ou nela nada interfere? Tentando não fazê-lo, acabo praticando o julgo sobre o outro três vezes por dia, para não dizer mais. Mas, confesso, a maioria das vezes é inconsciente ou, ao menos, incontrolável. Quando percebo, já foi. Julguei!
Por estar arduamente tentando lidar comigo, com consciência e responsabilidade, consegui compreender que o outro é veramente espelho. A partir disso, meu olhar sobre mim e, principalmente, sobre o outro, que nada tem a ver com minhas dores, traumas e descontroles, tem carregado um tanto mais de compaixão e afeto.
Meu inferno é suportar o dia a dia, disse Belchior alucinando com a realidade. Belchior e Sartre são inseparáveis em reflexões poético-filosóficas acerca da vida real. Juntos escancaram nossa nudez de alma e fragilidade de ser. Somos tão pouco perante o universo e tão gigantes ante nossas imensidões individuais, que aguentar essas compreensões é uma vitória cotidiana.
Infernal é lidar com quem se é, dentro das infinitas pequenezas e mediocridades. Inferno é saber que nosso julgamento do outro está totalmente ligado ao que somos no interior profundo. Inferno é não conseguir lidar com nossas próprias emoções e ter crises de ansiedade paralisantes. Inferno é deixar o ego tomar conta das nossas mínimas decisões.
Inferno, em suma, para nós, é se queimar nos próprios desconhecimentos e ausências de coragem de enfrentar a verdade — por vezes asquerosa — do que carregamos dentro da nossa existência.
Não há outra grandes possibilidades, ou ardemos nesse inferno ou buscamos o céu numa melhoria na relação que estabelecemos com o mundo que se personifica nas gentes que nos rodeiam.