Dias passados, acordei, relógio gritando, botei soneca três vezes, não tinha jeito, teria que me levantar, a vida me esperava lá fora. A vida, lá fora, eu, na cama - relutante. Eu, congelada num calor de 25 graus. Eu, amedrontada pela possibilidade de enfrentar a vida e suas coisas complexas. Eu, olhos cerrados, porém acordada, ansiando que aqueles cinco minutos de soneca durassem uns 25 anos - pelo menos.
Resisti o quanto pude ao despertar do dia. Num pulo me levantei, sabia que somente minha vontade era mastro que me fizera bandeira hasteada a bailar ao vento nesses 34 anos. Me pus de pé e saí a bailar a dança triste dos dias duros, áridos. Fui sem ritmo, sem balancê, sem quadris que se impõe em ancestralidade selvagem, sexy.
Tenho pés marcados por muita caminhada, calejados. Mas, também tenho pés que carregam a alegria de mil horas de baile. Já fui a pessoa mais rica do mundo enquanto, numa pista de boate aleatória, mexia meu corpo em compasso perfeito ao som de Caetano Veloso. Já fui um pedaço de deus na terra quando, com olhos fechados e mãos aos céus, escutava Nina Simone. Eu já fui.
Enquanto contemplava meu suingue ir embora, me fiz mãe. Enquanto minhas pernas enrijecem, minha filha vai se firmando gente. Gente que dança. Eu, que vivi a dançar não a ensinei o ofício, meu corpo sim. Meu desejo a conduziu à batida perfeita e incrivelmente acertada de nós duas - creio.
Ela aprende a ser gente, eu reaprendo. Eu, nos meus primeiros passos da reconstrução do viver sendo quem nasci para ser. Ela se espelhando com alegria e me pedindo: dança comigo, mamãe.
No início titubiei, me senti constrangida, tudo me parecia demasiadamente infantil. Como pode uma mulher que logo entrará nos quarenta anos bailar pela sala? E os boletos? E a janta que ainda não fiz? E minhas pernas que doem? Tudo parecia desproposital.
Covardemente, criei tantos empecilhos para ser feliz. Fiz isso a vida toda. Eu sei, eu vi. Me acovardei sem nada ter a perder, como pode? Fui covarde por hobby? Oh, Deus, quem me roubou de mim? Quem tirou o sacolejo dos meus quadris?
O que foi feito da criatura bailarina que se pôs no palco, nas ruas, na ponta do pés, de quadris moles, de cara pro mundo? Respondo agora: cá, estou! Demorei um pouco a responder a chamada, eu não sabia exatamente se a vida estava a chamar o meu nome. Hoje sei.
Ontem eu soube. Atendi o chamado da minha filha para uma dança no meio da sala, foi incrível. Ainda domino meu corpo, percebi. A partir disso, o que eu não poderia dominar? A vida é um concurso de dança, eu não preciso competir, não há nada mais a provar.
Minha filha me chamou à dança e, com isso me chamou à vida, eu aceitei dançar e viver. Rodamos pela casa, gargalhamos, me senti boba, ela amou. Não me senti constrangida, me senti pronta.
Ontem não foi um dia, foi um marco. Ontem eu voltei a dançar, voltei a viver. Saiam da minha frente, a vida é minha pista de dança.