De repente, assim como um ovni que paira no céu em uma noite calma ou só mais um bilhete de loteria mas que no fim acaba premiado, acordei com essa sensação de estar cansado de mim. Sem motivo algum, sem qualquer aviso prévio. Estaria mentindo se dissesse que mal consegui me olhar no espelho, ou até mesmo que não me reconheci. Eu ainda estava lá, tão igual como sempre fora antes, e talvez tenha sido exatamente isso que me fez passar o dia questionando: e se eu não gostar mais de mim?
Penso em lugares e pessoas e situações onde o tempo máximo que aguentei existir foi um par de horas. Assim que encontrei uma brecha, escapei sem deixar vestígios e voltei para casa. Um bálsamo. Cenas assim não são mais tão frequentes, já que tenho peneirado aquilo que desejo ou não fazer parte. Todavia, o mesmo já não posso fazer se o desconforto em questão recaiu sobre mim. Se não ando mais tão contente com o meu próprio eu, para quem eu volto quando voltar para mim mesmo não me parece bom convite?
Longe de jogar na mesa a hipótese de algum desequilíbrio mental. Quanto a isso, nunca fui tão dedicado; Aluno nota dez. Quem sabe os efeitos da terapia não estejam respingando no dia a dia que, vez que outra, faz com que eu estranhe minha própria companhia. Em contrapartida, aceitaria sem grandes oposições se alguém dissesse que se trata de um desequilíbrio emocional – até porque, quando é que a gente pôde dizer que tinha o balanço ideal no peito que (a duro custo) ainda nos preserva humanos?
Ouso dizer: nunca gostei tanto de mim. É aquela velha história de gostar mais de si a medida em que o tempo passa, e que não gastaríamos um centavo sequer para voltar a ter dezoito anos, sabe? Acontece que a proposta imprescindível do autoconhecimento abraça mas também assusta. Espanca e faz cafuné. Quanto mais me conheço, mais percebo que nunca me conheci tanto quanto agora – e dá medo pensar no quanto ainda tenho a conhecer. O espelho, então, escancara muito mais que a casca. Quer dizer, já sabemos que pela manhã o cabelo vai estar bagunçado e a cara amassada, mas o que reflete de mim que é invisível e que me incomoda muito mais?
Teve quem sugeriu recalcular a rota. Até aceitaria o conselho, mas saber qual é o desvio mais apropriado para agora também é uma resposta que não tenho. Alguns amigos pediram calma, e me envolvendo em panos quentes juraram ser só uma fase ou semana ruim. De olhos fechados antes de dormir, lembrei de quando era criança e desejei ser um Tamagotchi – um brinquedo eletrônico cujo objetivo era cuidar do bicho que aparecia na tela. Suas vidas eram infinitas, desde que você apertasse um botão escondido no aparelho que fazia ele reiniciar quantas vezes fosse conveniente.
Até este exato segundo, não encontrei esse botão – nem no rodapé do meu pescoço, nem na dobra dos meus joelhos.
De volta à realidade, terminei uma palestra cansado da minha voz. “Nem eu aguento mais me ouvir”, foi o que eu disse para alguém que estava por perto. A partir dali, senti o fardo de sermos um só, incapazes de se esconder da própria sombra. Assim, entrei no carro e me levei pra casa, mesmo que naquela noite eu quisesse ter inventado qualquer desculpa para poder dizer: desculpa, mas hoje não consigo te dar carona. Fica pra próxima.