A única lembrança que tenho anterior aos meus dois anos de idade foi contada pelos meus pais ao longo da vida. Eles relataram que eu não dormia em quase nenhuma das noites, e que isso durou por muito tempo. É claro que sempre acreditei, até porque, absolutamente ninguém no mundo é capaz de dizer o que aconteceu até os seus 30 meses de vida – o sistema nervoso central, ainda sem estar totalmente desenvolvido, impossibilita. Então aquilo que temos de nós mesmos, ao menos no iniciar da caminhada, é puramente aquilo que nos contaram. E não é estranho pensar que protagonizamos histórias que nem ao menos lembramos de ter vivido?
Aqui, o discurso “se não lembro, não fiz” não cabe. A amnésia infantil, diferente de qualquer desculpa ordinária da vida noturna, não isenta os registros daquilo que é vivido. Dessa forma, com o passar dos anos, as nossas ações são pautadas até mesmo em episódios esquecidos nesse lapso temporal, mesmo que inconscientemente. Assim como diversos esquecimentos corriqueiros, não recordamos onde é que tal coisa foi guardada, porém temos a certeza de que se esconde em alguma gaveta de algum lugar qualquer.
E é aí que pulam à superfície do cotidiano alguns traumas que, por vezes, nem sabemos dizer de onde surgiram. São medos, dores, frustrações ou associações afetivas que nos pegam de surpresa, mesmo que uma parte da gente soubesse que tudo sempre esteve aqui dentro, por mais que tenha permanecido calada durante anos.
Ganhei um bom exemplo disso ao assistir a um vídeo que minha terapeuta publicou. Nele, ela oferecia um biscoito para a sua cachorra que foi resgatada com 45 dias de vida, logo após ter sido agredida com uma vassoura. Estrategicamente, o espaço que separava as duas foi preenchido justamente por uma vassoura, e a gravação registrou o medo e receio estampados na cara do animal. Petrificada no lugar, nem mesmo o petisco foi capaz de quebrar a barreira por conta de um trauma registrado logo nós primeiros dias de vida.
Desde então, tenho me questionado qual seria a minha vassoura. Por enquanto, a única resposta aceitável que recebi de mim mesmo é a de que minhas vassouras são várias. Não sei dizer ao certo quando foi que elas passaram a existir, ou se já existem antes mesmo de eu recordar da minha própria existência. Porém, o que me alivia é saber que, mesmo depois de tanto tempo, ainda somos capazes de derrubar uma a uma. E assim, lentamente, com o perdão do trocadilho, varremos qualquer lembrança que estiver atrapalhando o nosso caminho.