Vi um rato feliz. Bem, só podia ser felicidade aquele estado de agitação do bicho numa pequena moita antes do contêiner de lixo. Eu levava um saco a descartar, quando me assustei com os movimentos do roedor cinzento e peludo quase aos meus pés. Os instintos acionaram o alerta de perigo com um arrepio gelado. Rapidamente, saí do caminho e ganhei a rua, de olho vivo no bicho. Ele ignorou minha presença e ficou pulando, todo elétrico, parecendo contente de entrar e sair do matinho que invadia a calçada. Depositei o lixo no contêiner e voltei pela rua, sempre atento à ameaça que a mente associa a toda sorte de doenças. Mais adiante, parei para olhar: e o rato lá, lépido, brincando com não sei o quê. Achei até graça daquele ânimo.
Quem disse que os ratos não merecem estar felizes? Pronto: sob o Sol de Sagitário, o insólito encontro com um roedor tido por pestilento acionou em mim questionamentos filosóficos. Enquanto subia as escadas do prédio, fui me perguntando se eu não tinha projetado no rato meu próprio estado de espírito naquele dia ensolarado. Afinal, eu é que havia interpretado o estranho comportamento eufórico do bicho como prova de contentamento, comparando-o a gatos e cães que também costumam deitar, rolar e repetir movimentos em sinal de alegria. Então os ratos, somente por serem veículos de doenças e indicadores de sujeira, não podem estar contentes?
Nisso lembrei de um poema do Ferreira Gullar que passeia pela temática da dor de todas as criaturas. Chama-se A Alegria. Diz o final: “A justiça é moral, a injustiça / não. A dor / te iguala a ratos e baratas / que também de dentro dos esgotos / espiam o sol / e no seu corpo nojento / de entre fezes / querem estar contentes”. Hum, é isso! Os poetas sempre nos dão chaves de acesso ao que não compreendemos bem. A moral que seguimos parece pressupor que somente ao justo – aos nossos olhos, é claro – cabe o direito ao bom, à felicidade. Aos ratos, emissários das pestes, resta o esgoto pútrido como natural habitat. Mas, e se alegria for um propósito superior da vida, para além da face sombria que também nos ronda?
Por associação, evoco uma cena terrível da infância: alguém chegou com um ratinho calunga preso pelo rabo, este a se debater e guinchar. Outro alguém deu a sentença: “Joga álcool e toca fogo!” Assim foi feito. O bichinho em chamas correu desnorteado, até parar de vez, o cheiro de queimado indicando seu fim, em meio a um coro de gargalhadas. O código era claro: aquele era o destino de roedores nocivos, inimigos dos humanos. Merecido, não? Eu fiquei muito mal com tudo, não soube definir o que senti ali, sequer tive coragem para tentar defender o animal. Quando resgato isso, como agora, o que fica é a comprovação da desumanidade dos ditos humanos.
Penso na epifania sobre a existência humana que a bruxa sagitariana Clarice Lispector teceu ao deparar com um rato morto, na magnífica crônica Perdoando Deus. Já eu, aqui, nem sei mesmo aonde quero chegar, senão partilhar o incômodo de ter visto um rato em sintomas de felicidade. Rato feliz, pode isso? E já era um bicho adulto, um ratão, não um filhote ao qual caberiam brincadeiras como a qualquer mamífero. Passou-me até pela cabeça que o bicho estivesse em convulsões, nos estertores de algum veneno. Mas conferi bem: estava a brincar, estava contente.
Triste mesmo é constatar que já não me causa espanto ir descartar o lixo e encontrar um humano dentro do contêiner. Sim, há algo de muito errado com nossos critérios de humanidade.