Adorado Caio F., amada Clarice, prezado Borges, dear Virginia Woolf, estimado Tolkien, caro Calvino, queridos todos que habitam em suas obras as estantes abarrotadas de minha casa: é chegada a hora de um certo desapego. Sem dramas, preciso urgentemente liberar espaço nas estantes, na vida. Já faz tempo que examino as centenas de livros espremidos nas prateleiras com intenções de renovação, daí que aproveito a passagem do Sol por Escorpião, como quem pede socorro ao cosmos, para levar a cabo esse propósito. Dói, dói, dói. Tenho a Lua em Touro, cumulativa e apegada. Não é fácil realizar o que me proponho. Por isso teço aqui justificativas que convençam meu boi manhoso a deixar ir o que precisa ir.
Vale lembrar: se Touro rege a forma, o oposto Escorpião rege a essência. Não preciso ter ao alcance das vistas aquele volume já lido e adorado. O livro já está em mim desde a primeira iluminação da leitura. E são tantos, e não param de entrar novos, que a possibilidade de uma releitura é vaga. O que justifica, então, a posse eterna, senão um fetiche que soa descabido em tempos de reciclagens e freio ao consumismo?
Muuuuu, muge meu boi tinhoso. Então já esqueceu do prazer que é rever a lombada daquele volume especial? Folhear a esmo, reler trechos... Ou apenas saber que ele está ali, feito um porta-retrato de alguém que amamos. Não é nem para emprestar, mas para ter. Vai que volte riscado, capa amassada, páginas dobradas. Ou pior: vai que nem volte. Quantos livros bacanas já foram perdidos nesse arroubo de compartilhá-los com gente que consideramos merecedora de viajar por onde viajamos na leitura? Deixe os livros quietos, cara. É só comprar mais uma estante.
Ah, nada é eterno, meu senhor, reage o pequeno e ainda mais tinhoso escorpião. Imagine o peso de existir se todo mundo guardar tudo o que porventura achou importante. Tanta leitura, aliás, só terá valido a pena se tiver contribuído para uma visão da vida mais leve e transcendente. Porque, no final, o que se leva dessa vida é a vida que se levou. É o que ficou como marca, e isso é quase sempre imaterial. Como no verso de Drummond, “as coisas findas, / muito mais que lindas, / essas ficarão”.
Eita, eita, empaca o boi. Quero ver agora desapegar dessa antologia do Drummond, que vossa senhoria vive relendo. Vai, joga fora o Pessoa, o John Fante, a Adélia Prado... Tente passar bem sem o Grande Sertão, por sinal muito sublinhado a lápis. Faça-me o favor! São âncoras físicas, que ajudam a balizar nossos dias. Todo homem que preze o saber, que aposte na elevação contínua da consciência, que lute contra a barbárie, precisa ter seu acervo literário. O paraíso é como uma biblioteca, já avisou o Borges, esse que corre o risco de ir embora.
Vixe! Deixa eu retomar o fluxo da crônica, senão o debate vai longe e eu sou capaz de desistir do desapego. Escorpião, me dê forças. Porque é como deixar um amor ir embora, a gente meio falsamente dizendo seja feliz, te amo tanto que te deixo ir, isso e aquilo, mas com o coração em frangalhos. Ei, Touro, desarme essa tromba. Pense nos novos livros que virão, naquele
cheiro bom de tinta, em cada encadernação tão vistosa... A vida precisa também ser o que virá.
Aos dois, prometo fazer desse ato uma festa. Convocarei amigos e conhecidos para o bazar do desapego. Bom para mim, saber que os livros amados estarão em mãos de gente também amada. E bom saber que um pouco de mim, daquilo que hoje me constitui, seguirá iluminando adiante.
(Ah, tudo muito lindo. Mas como dói. Muuuu).