O que conecta o filme A Pequena Sereia e a proliferação de farmácias? Ora, ambos os temas são regidos na astrologia pelo planeta Netuno. Sim, o enorme astro azul associa-se tanto às imagens e sonhos que alimentam o cinema como ao estado de transcendência em que a dor não existe. Seja pelo arrebatamento emocional provocado por um filme ou pela anestesia de algum medicamento, Netuno é o mágico torpor que nos conduz a um mundo paralelo, entre o inconsciente psicológico e o metafísico reino do espírito.
A figura mítica da sereia, oriunda de várias culturas, é naturalmente netuniana por habitar as profundezas oceânicas e por sua condição híbrida entre o humano e o peixe. Costuma ser retratada como uma criatura perigosa, cujo canto hipnótico arrasta os homens para o afogamento fatal. A canção É Doce Morrer no Mar, com letra de Jorge Amado e música de Dorival Caymmi, ilustra isso: “Saveiro partiu de noite, foi / Madrugada não voltou / O marinheiro bonito / Sereia do mar levou”.
No conto A Pequena Sereia, o dinamarquês Hans Christian Andersen (1805-1875) inverte a narrativa mítica ao dar protagonismo a uma sereia seduzida pelo mundo dos humanos. Mais: é a sereiazinha que se apaixona por um jovem príncipe. Paixão impossível, claro, mas tão irresistível que ela se dispõe a abrir mão da própria voz, num pacto com uma bruxa, em troca de um par de pernas que a fizesse plenamente humana e merecedora da atenção do príncipe.
E haja sofrimento! O conto não poupa as crianças, como o fará a popularíssima versão do filme da Disney em 1989. Quando o texto foi publicado, em 1837, Netuno estava em tensão com Saturno, como se a realidade cobrasse o preço do sonho. A bruxa não apenas rouba a voz, mas também corta a língua da sereia, além de condená-la a sentir dores terríveis quando andasse no chão, como se pisasse em afiadas facas. O final é trágico: o príncipe casa-se com outra e a preterida sereia atira-se mortalmente nas águas.
Estudiosos da vida e da obra de Andersen apontam nesse triste desenlace uma projeção dos próprios tormentos afetivos do escritor. Embora tenha superado a pobreza da infância e se tornado um autor reconhecido, Andersen nunca conseguiu viver o amor. Sua orientação sexual ainda é motivo de controvérsias. Contos como O Patinho Feio, O Soldadinho de Chumbo e muitos outros são interpretados como pistas do sentimento de rejeição física e emocional do escritor.
Em A Pequena Sereia, uma diferença crucial entre o conto e o filme é a própria motivação da sereia em trocar seu mundo pelo dos humanos. O que ela mais anseia, no texto de Andersen, é conquistar uma alma imortal, já que as sereias, embora pudessem viver 300 anos, desapareciam qual espuma depois desse tempo. Somente o amor que recebesse de algum humano garantiria a imortalidade da então cultivada alma. Essa visão conjuga a moral cristã do autor e os ideais românticos de sua época. A morte da sereia, no fim do conto, ganha, assim, um tom redentor com a conquista de uma alma por ela. É a felicidade no plano do espírito, tema de Netuno.
Não foi por aí que o filme caminhou, em 1989, em tempos muito mais materialistas. A recriação do filme agora, na técnica realista da live-action, eliminou ainda mais o encantamento da primeira versão. O novo filme não tem alma, dizem alguns críticos. Ironicamente, vem de um conto sobre alma! Mas é a cara de nossa época, em que farmácias aos borbotões vendem remédios para o vazio deixado por uma alma que, faz tempo, sumiu do peito do mundo.