Nestes tempos elétricos e de alta ansiedade, em que somos enredados na voracidade de tantos estímulos virtuais, ler um livro é sempre um ato revolucionário. São exigidas horas e horas de completa atenção e algum retiro silencioso longe da turba cotidiana. Reler, então, é quase uma provocação, já que não sobra tempo direito nem para dar conta das leituras inéditas. Mas foi com um misto de orgulho acintoso e de pura reatividade ao atual estado de coisas que decidi alternar minhas leituras entre um novo título e alguma releitura. Fiz disso uma regra.
Nunca fui dado a releituras, pois a sede de sorver tantas obras imprescindíveis não abria espaço para degustar com outros olhos o já lido. Mas eis que me percebo no limiar do terceiro ato da minha vida, em que o ritmo sugere – ou melhor, impõe – escolhas e conclusões. Já não cabem adiamentos enganosos. Não vai chegar facilmente esse dia de decantar o que foi bom. Daí é preciso tomar o tempo à força, no muque mesmo, da sanha embaraçadora das redes de toda sorte.
Foi depois de um longo trânsito de Saturno, o senhor do tempo, que levei a cabo a decisão de atentar mais para o que precisa ser reafirmado. Posso seguir sendo um utopista, a crer que o melhor foi feito no futuro e a insistir nessa direção, mas convém carregar na bagagem o que já se provou fundamental. Isso alude à tal sabedoria apregoada como dádiva do tempo, coisa de Saturno também. Pois saber é filtrar, é selecionar. É conhecer o caminho que nos trouxe até aqui.
Uma avalanche de efêmeras novidades, sustentada pelo onipotente deus mercado, tem causado danos terríveis à história e à memória. O perigo mais imediato disso está na relativização, e até na reinvenção irresponsável, de doutrinas mortais do passado. Há informação demais e formação em baixa; muitos dados e nenhum senso crítico; muita distração e zero concentração. Por isso ler é revolucionário. E reler é feito uma Revolução Francesa contra a tirania do algoritmo.
Agora releio A Obra em Negro, de Marguerite Yourcenar. Sempre guardei um carinho enorme por esse romance histórico ambientado no século 16, numa Europa que vivia o Renascimento e o nascente Capitalismo em meio aos estertores do pensamento medieval. Entre pestes, disputas religiosas e o avanço inexorável do paradigma científico, a autora nos arrebata numa prosa absolutamente maravilhosa, destacando o personagem Zênon, médico, filósofo, alquimista e astrólogo, às voltas com o obscurantismo. Como tem acontecido com todas as minhas releituras, tenho gostado ainda mais de cada livro.
Já sabendo como a história termina, presto mais atenção ao estilo, à linguagem, à estrutura narrativa – enfim, ao caminho do livro. A Obra em Negro, relido, me revela conexões com os tempos atuais que não estavam à vista quando o li por primeiro, há muitos anos. Quem poderia imaginar que uma visão de mundo livre dos dogmas de fé, por mais afeita ao conhecimento racional, seria confrontada, em plena era tecnológica, exatamente por um pensamento de tom supersticioso e medieval?
Por fim, uma coincidência (ou não) astrológica. No céu, o Sol entra em Gêmeos neste domingo, signo de Marguerite Yourcenar, que tinha no mapa natal Júpiter em quadratura com Plutão, aspecto que volta a se repetir agora. Vivemos uma obra em negro coletiva? Quero crer, como os antigos alquimistas, que estamos na fase mais escura e purificadora do longo processo que conduzirá ao ouro do conhecimento e da verdade. Sei, sou um utopista, mas é o que sou – o meu ouro.