Pela efeméride deste sábado, data dos 135 anos da Lei Áurea, resolvi espiar o céu daquele histórico domingo em que se anunciou o fim da escravidão no Brasil. Diante do Paço Imperial, no Rio de Janeiro, cerca de 10 mil pessoas ovacionaram a esperada decisão, votada pelo Senado e assinada pela princesa regente Isabel. Machado de Assis escreveria: “Foi o único dia de delírio público que me lembra ter visto”. No meio da multidão, o menino negro que futuramente seria o escritor Lima Barreto completava naquele dia sete anos de idade e se lembraria disso como a visão de uma vida festiva e harmônica. Um sonho de país se desenhava ali.
No horizonte leste, Urano, planeta da liberdade, e Marte, astro das lutas, se alinhavam no signo de Libra. Não poderia haver auspício melhor para a ansiada justiça, fruto de intensas movimentações populares pela causa abolicionista. Júpiter, planeta também ligado às leis, transitava em seu próprio signo, Sagitário, em oposição a Netuno e Plutão, dando pistas de uma mudança radical nos paradigmas coletivos, com mais inclusão. A Lua, em Gêmeos, na fase nova e em posição elevada, parecia confirmar o sentimento comum de mudança nas hierarquias sociais. Tantas boas promessas, porém, bastariam para mudar a história de um país forjado em mais de 300 anos como o principal destino dos negros escravizados?
Essa resposta seria afirmativa se hoje, passados 135 anos, a população brasileira, composta por 54% de afrodescendentes, também tivesse a mesma proporção em termos de representação política ou de afirmação cultural. A justiça potencial do céu da abolição seria uma realidade hoje se as prisões não fossem ocupadas por negros numa proporção muito superior – cerca de 67% – à da população em geral. Algo deu errado ou não se cumpriu na largada, apesar das boas intenções. E o mapa do céu daquele 13 de maio deve mostrar também esses fatores reativos à igualdade de fato.
Havia quatros astros em Touro, incluindo seu regente, Vênus, que também rege o signo ascendente, Libra. No entanto, Vênus estava em tensão com o resistente Saturno e, para piorar, na mesma posição em que estava Saturno no mapa da Independência do Brasil. Ou seja, havia estruturas tradicionais a impedir a expressão dos valores que significariam uma nova ordem produtiva e social. Com o poder mantido intacto pelos latifundiários de sempre e com a negação de uma política de terras para os ex-escravizados, a estes nada restou senão sobreviver nas periferias literais e simbólicas.
A própria queda da Monarquia no ano seguinte, com o golpe que instaurou a República, foi também uma forma de revanche dos poderosos à abolição. Expulsa do país, a redentora Isabel foi viver com a família na França. No livro Chatô – O Rei do Brasil, biografia do magnata da comunicação Assis Chateaubriand, Fernando Morais relata uma visita do jornalista à princesa exilada, em 1920. Já velhinha, Isabel queria saber em que pé estava a situação dos negros libertos: “E então, doutor Assis, o que foi feito dos negrinhos que vendiam cocada, tapioca e beijus nas ruas de Petrópolis em 1888?”. Chatô não teve coragem de dar a real e mentiu: “Vão bem, alteza, os seus negrinhos vão muito bem”.
Mesmo hoje, o sonho da profunda abolição ainda não vingou. Nada a estranhar no país que mais recebeu escravizados e que também foi o último a libertá-los. E se essa luta não transcender as cores de pele e envolver todos os brasileiros que se considerem humanos, nunca haverá um Brasil digno para ninguém.