“Seu dotô me dê licença / Pra minha histora eu contá. / (...) Eu sou fio do Nordeste / Não nego meu naturá / Mas um seca medonha / Me tangeu de lá pra cá”. Esses versos do poeta e trovador cearense Patativa do Assaré viraram música gravada por Fagner, a conhecida Vaca Estrela e Boi Fubá. É um fragmento da obra monumental do caboclo quase iletrado Antônio Gonçalves da Silva (1909-2002), que cedo ganhou nome de passarinho pela musicalidade de suas declamações. Ele seria mais um dos tantos poetas populares do Nordeste, mas foi reconhecido ainda em vida como gênio – chegou a ser alvo de estudos na universidade Sorbonne, em Paris – principalmente pela temática social de seus versos. Exalto aqui Patativa do Assaré também porque ele era de Peixes, o signo do amor devotado aos sofridos e humilhados.
Seus poemas, sempre no tom da oralidade e assombrosamente guardados na memória, foram em boa parte reunidos em livros, como Cante Lá Que Eu Canto Cá (1978). Na apresentação deste, Francisco Salatiel de Alencar situa os poetas como porta-vozes de um mundo silenciado pelos prepotentes que pretendem manipular a vida ao seu bel-prazer. E Patativa do Assaré deu voz ao “sertão sofredor”, com sua “inesgotável capacidade de comunhão e simpatia pelos que sofrem, pelos que vivem humilde e pobremente, pelos fracos, pela gente simples do nosso povo”.
No poema Vida Sertaneja, ele assume esse papel de cantador como uma sina: “Por força da natureza / Sou poeta nordestino, / Porém só canto a pobreza / Do meu mundo pequenino. / Eu não sei cantá as gulora, / Também não canto as vitora / Dos heróis com seus brasão, / Nem o má com suas águas... / Só sei cantá minhas mágua / E as mágua de meus irmãos. // Canto a vida desta gente / Que trabaia inté morrer / Sirrindo, alegre e contente, / Sem dá fé do padecê, / Dessa gente sem leitura, / Que, mesmo na desventura, / Se sente alegre e feliz, / Sem nada sabê na terra, / Sem sabê se existe guerra / De país cronta país.”
E ele entendia bem de sofrimentos e labutas. Ficou cego de um olho aos seis anos, devido ao sarampo, e perdeu o pai aos oito, quando teve que trabalhar na roça com o irmão mais velho para sustentar os menores. Aos 12 conseguiu frequentar uma escola por apenas quatro meses, o suficiente para aprender a ler. A vida lhe trouxe a poesia dos trovadores e, com a primeira viola, aos 16 anos, passou a cantar de improviso, a partir dos temas que lhe apresentavam. Daí o caboclinho foi brilhar nas rádios e logo chamou a atenção de gente mais estudada, sem jamais deixar de cultivar o chão sertanejo em que nasceu.
Talvez pela posição de Mercúrio no visionário signo de Aquário, Patativa do Assaré era dotado de uma compreensão extraordinária das dinâmicas da sociedade. Dizia ele: “Não tenho tendência política, sou apenas revoltado contra as injustiças que venho notando desde que tomei algum conhecimento das coisas, provenientes da política falsa, que continua fora do programa da verdadeira democracia”. Como matuto sertanejo, ele sabia “Que os homi de posição / Só óia para o seu rosto / Pra ele pagá imposto / Ou votá nas inleição”.
Patativa do Assaré foi um artista brilhante que emergiu do povo, feito um milagre, para cantar a dignidade dos humildes. Ao falar com tanta verdade das miudezas de sua aldeia, atingiu o universal – razão pela qual foi estudado na Sorbonne. E hoje rogo a esse anjo caboclo, a esse eterno passarinho, que faça seu canto mágico sensibilizar o coração de pedra de tantos “homens de posição”.