A esta altura, já não cabe falar do misto de raiva, tristeza e vergonha alheia que me causou o discurso infeliz do desatinado vereador. Acompanhei a repercussão nacional do caso e confirmei que, ufa!, passou o tempo de ofensas legitimadas em escala federal, de lacrações raivosas em bolhas e cercadinhos.
O país se cansou de tanto ódio. Daí que a maior vítima desse episódio foi o próprio agressor, que cometeu um estúpido suicídio político. Por isso, na condição de um jornalista baiano que vive há 30 anos em Caxias do Sul e que transita nas duas culturas, não preciso defender “aquela gente lá de cima”. A Bahia não precisa disso. Melhor clarear um pouco a ignorância que cega o vereador sobre sua própria história.
Seu sobrenome ecoa a narrativa fundadora da cultura caxiense, conduzida pelos italianos que há quase 150 anos foram expulsos da terra onde eram servos e que vieram ao Brasil em busca de um pedaço de chão. É uma narrativa de vencedores. A prova disso aparece há décadas no inegável progresso da região.
O problema, comum a certos descendentes de imigrantes (poucos, ainda bem), é alçar-se a uma superioridade étnica e moral, como se o sucesso como empreendedor não dependesse de nada além do próprio mérito. Esquecem-se da penosa condição ancestral, a não ser quando for para enaltecer a si mesmos no quesito superação. Negam, assim, as condições sociais injustas que um dia os expulsou de seu próprio país.
No livro Italianos e Gaúchos, o antropologo Thales de Azevedo resgata a dureza dos primeiros anos da colonização da Serra, quando “o colono necessita alugar os seus serviços aos vizinhos colonos alemães e aos fazendeiros da zona do campo, para obter renda até que suas lavouras comecem a produzir”. Muitos precisavam trabalhar bem longe de casa, fosse nas minas de carvão de São Jerônimo ou na construção da estrada de ferro de São Leopoldo a Taquara. Imagine as condições de trabalho naquela época, em que nem se falava em direitos trabalhistas. Imagine os alojamentos precários, a comida. Quem passou por isso certamente saberia respeitar a luta de outros trabalhadores sem terra nem condições.
Mais adiante, durante as safras, principalmente a de uva, o modelo de agricultura familiar – exigido no projeto da colonização – obrigava crianças e adolescentes a faltarem à escola para ajudar os pais. Azevedo conta que havia até uma “tolerância da escola nos horários de entrada e saída, encurtando o tempo das aulas”. Mesmo já na década de 1950, “a proporção de assalariados na região é, no máximo, de 6%, constando de trabalhadores avulsos admitidos sobretudo para as colheitas”. Com um histórico desse, como imaginar que no futuro alguns descendentes de imigrantes não valorizariam as boas condições de trabalho? Ou que outros irão preferir não a compaixão pelos necessitados mas o papel de exploradores?
Certamente nenhum baiano hoje deixa sua terra distante para trabalho temporário no sul se não for por brutais necessidades, como aquelas que marcaram os italianos na região. O vereador precisa pensar nisso. E para aprender a ter mais respeito com outras culturas, precisa saber que o citado Thales de Azevedo – um baiano – foi responsável pelo primeiro estudo extenso da cultura híbrida que se formou em Caxias do Sul, fruto da troca entre italianos e brasileiros. Esse livro maravilhoso do Thales foi a fonte básica quando eu, outro baiano, fui convidado a criar o roteiro do desfile da Festa da Uva de 2016, que fiz com todo amor e respeito. Amor e respeito: fica a dica, vereador.