A mulher separa os quadrados de tecido para a colcha de retalhos. Um pedaço verde, outro amarelo, quem sabe este vermelho entre os dois. É tão bom compor misturas. Olha o verde: acaso não é resultado da combinação do amarelo e do azul? Primárias, secundárias ou terciárias, as cores todas são filhas do mesmo feixe luminoso que vem do Sol. A artesã redefine a ordem dos retalhos, em busca de novas geometrias, brincando de ser prisma a compor e decompor as cores da colcha. A costura final prenderá cada retalho ao vizinho, fixando um efeito estético. Mas filosofa: mesmo acabada, a colcha multicor poderia ser mergulhada numa potente água sanitária e talvez toda ela voltasse ao tom natural do algodão de antes das tinturas – o branco do feixe solar! Verde, amarelo, vermelho? Tudo ilusão, tudo ocasião.
A artesã mora numa casa humilde, hoje de alvenaria, mas antes um simples barraco encravado na encosta desmatada, quando uma estreita vereda conduzia ao balneário, lá embaixo, circundando as casas de veraneio e condomínios que se multiplicavam. Outros trabalhadores sem posses, como ela, foram chegando e erguendo seus casebres. Pescadores que tinham vendido suas terras perto da praia, agora sem dinheiro, também chegavam. Não demorou, e o morro virou um presépio de casinhas pendentes, para horror dos condôminos da orla, que se diziam agredidos pela favelização daquele paraíso. Os muros ficaram mais altos, com serpentinas cortantes nas bordas e guaritas de vigilância. A artesã vende suas colchas de retalhos aos turistas. Seus vizinhos também labutam por ali: garçons, cozinheiras, garis, ambulantes. Por conta das chuvas torrenciais, a mulher estará em casa no fatídico dia em que a encosta inteira descerá num rio de lama, soterrando barracos, muros e mansões.
Dali a 50 anos, uma equipe de arqueologia estará a escavar aquele trecho em que a face leste da serra encontra o mar. Exceto pelos condomínios ainda mais fechados, a paisagem estará mudada, sem casebres nem vielas. Um escavador da equipe gritará aos outros quando encontrar um fêmur. Logo avistará mais ossos do esqueleto. O chefe da equipe examinará se há objetos que revelem a época da morte e recolherá cuidadosamente os indícios. Pela datação científica, saberá que os ossos não serão dos habitantes primordiais dali, mas de algum morador ou moradora do morro na época do deslizamento monstruoso. Os restos nada revelarão sobre classe social, cor e sexo da pessoa em questão. As categorias tão definidoras de valor na época do desastre de nada valerão. O arqueólogo, então, pensará no destino comum de todo humano: cores de um mesmo feixe solar na origem, mero adubo na terra ao final.
Sob o enevoado Sol de Peixes de 2023, o cronista aquieta a imaginação. Lembra que Saturno entrará neste signo dia 7 de março, para um percurso de dois anos e meio. Nessa última etapa zodiacal, a da dissolução, o astro das estruturas deve exigir a consciência de nossa unicidade com todas as formas de vida. Pois é ilusória e circunstancial toda separação. Contas bancárias e cores de peles e de bandeiras não mudam o fato de sermos igualmente humanos, capazes de sofrer as mesmas dores. Trancar-se entre muros não nos protege da desordem e da injustiça acolá. Saturno em Peixes quer exaltar o fundamental dom da compaixão – esse fio de amor universal que nos costura a tudo. Para dar um sentido grandioso ao breve milagre da vida. E para fazer jus à divina luz da estrela que nos faz tão únicos quanto semelhantes.