Revi recentemente o filme O Evangelho Segundo São Mateus, de Pier Paolo Pasolini, cineasta italiano lembrado em março pelo seu centenário de nascimento. Tanto desta vez como da primeira, cheguei ao fim do filme tão emocionado quanto impactado. O roteiro foi extraído rigorosamente do evangelho de Mateus, sem licenças ficcionais. Todas as falas de Jesus são passagens bíblicas literais. No entanto, a fotografia em preto em branco; gente do povo, e não atores, vivendo os personagens; cenários naturalistas e minimalistas, distantes do padrão de Hollywood, e um Jesus de tom áspero e contundente dão a marca autoral de Pasolini ao filme – e a genial originalidade deste.
Ateu, comunista e homossexual, Pasolini era um crítico feroz da sociedade industrial consumista. Causou estranheza, em 1964, sua opção por filmar a narrativa do primeiro dos evangelhos – ele vinha de filmes realistas e de temática social. Esperou-se uma versão iconoclasta e ácida, própria a um ateu. A surpresa da versão literal do evangelho, contudo, não impediu que católicos conservadores considerassem o filme uma blasfêmia. O Vaticano o repudiou. Seria efeito da postura sempre reativa e provocante do cineasta? Talvez. No fundo, as escolhas estéticas de Pasolini, ao ressaltarem a força do discurso de Jesus, soam como uma bofetada contra a hipocrisia de certos assumidos cristãos.
No célebre Sermão da Montanha, o Jesus do filme, com voz firme e imagem do rosto em primeiro plano, é incisivo: “Ninguém pode servir a dois senhores, pois ou odiará a um e amará o outro ou se dedicará a um e desprezará o outro. Não podeis servir a Deus e ao dinheiro”. Se essa passagem ganhou significado nas intenções críticas do cineasta à sociedade de seu tempo, ganha-o ainda mais em nossos dias.
Noutra cena, ao entrar em Jerusalém, Jesus, tomado de fúria, lança-se contra os que transformaram o sagrado templo num comércio. Pasolini faz essa intervenção ser vista com preocupação pelos sacerdotes. Jesus se exalta: “Está escrito: “Minha casa é uma casa de oração, mas fizestes dela um covil de ladrões’”.
Em trechos como esses, ressalta-se a explícita denúncia de Jesus sobre as promíscuas relações entre instituições religiosas e o poder econômico. Sabemos o fim dessa história: são os homens da fé, os tais guardiões das leis sagradas, que condenam Jesus à morte. É a multidão alucinada, insuflada pelos sacerdotes, que clama pela crucificação. E é o lavar de mãos da justiça, a cargo de Pilatos, que entrega Jesus à sanha dos senhores da fé.
O filme potencializa a carga revolucionária e humanista da mensagem de Jesus e o quanto esta ameaçava o poder religioso vigente. Mais: nos faz perceber, em nosso contexto, a distância abissal entre a pregação pura de Cristo e a interpretação dela por certas instituições ditas cristãs.
Pasolini foi brutalmente assassinado em 1975, por motivos ainda obscuros. Mas sua arte segue atual, assim como o incômodo alerta de seu Jesus de que não se pode servir a Deus e ao dinheiro ao mesmo tempo. O Evangelho Segundo São Mateus – agora adotado e recomendado pelo Vaticano – pode ser conferido no YouTube.
A propósito, no mapa deste ano astrológico, a complicada posição de Mercúrio (conjunto a Júpiter e Netuno, em Peixes), num setor também associado à visão religiosa, nos convida a revalidar a constitucional separação entre crenças e poder. Sobre o recente escândalo envolvendo figuras do governo e alguns pastores, o Jesus de Pasolini certamente diria: “Bando de víboras!”.