Há uma cena na comédia besteirol Apertem os Cintos, o Piloto Sumiu! (1980) que sempre me faz rir. Com o avião desgovernado, uma mulher começa a surtar, querendo sair dali, quando outro passageiro, para acalmá-la, dá-lhe um bofetão na cara. A seguir vem outro passageiro, que pede calma e sapeca-lhe mais um tabefe. E outro, e outro, numa fila de gente querendo fazer a pobre histérica voltar ao normal na porrada. É um clichê do audiovisual alguém recobrar a razão com um tapa na cara, e a graça maldosa da cena reside nisso. Pois bem: nesses tempos em que a realidade parece uma comédia de mau gosto, em que até o país parece um avião descontrolado, me pergunto o que seria um metafórico tapa que devolvesse a razão aos tomados pela cega histeria.
Ao contrário do filme, a possessão por emoções sombrias não brota do medo de o “avião” cair, mas de uma convicção de que tudo está normal. Ora, todo voo tem turbulências, está tudo certo. Logo tudo vai se acalmar. E assim viajam tantos nessa nave louca, negando com veemência o fato de que a barbárie já invadiu a linha da civilização e a morte já banalizou-se a ponto de perder seu impacto. Tomados de um frenesi arrogante, reivindicam o direito de conduzirem a vida na direção dos desejos mais egoístas. E ai de quem ousar mostrar que esse tipo de atitude não passa de estupidez.
Há anos gasto meu estoque de perplexidade com o longo e perigoso trânsito de Netuno. Desde 2012, com a entrada do planeta em Peixes, seu próprio signo, vejo o borrar das fronteiras entre fantasia e realidade e o emergir de sonhos e projeções de fundo religioso. O desencanto com o mundo, a frustração e o cansaço alimentam imagens redentoras. Surge o anseio por um salvador que resgate um paraíso perdido. O senso comum diz que os males do mundo são culpa dos que ousam desafiar a tradicional ordem das coisas. Tudo era tão perfeito quando “os outros” sabiam seu lugar de subalternidade, não? Pronto: eis um efeito da cegueira luminosa de Netuno.
Netuno costuma estar por trás dos sonhos coletivos de um mundo mais justo ou perfeito. É o mesmo planeta que embasa o mito pisciano da transcendência pelo espírito, cuja manifestação mais conhecida é o cristianismo. Jesus é um avatar da ainda vigente Era de Peixes. É o salvador, que anunciou um outro reino, fora deste mundo. Mas Netuno também aparece em reinos mais mundanos, como na política, em que líderes são mitificados e passam a simbolizar um messias redentor. E imagine quando a política se alia à religião! A vibração de Netuno é irracional. É a energia que dissolve os egos e os funde numa massa poderosa, como no frissom de um estádio de futebol, num concerto de rock, no Carnaval, num culto religioso ou num comício.
Nesse nível de fusão, em que a razão desaparece e “iluminações” carregadas de emoção recortam ou turvam a realidade, os perigos são muitos. Hitler tinha Netuno conjunto a Plutão no mapa natal: seu projeto de mundo perfeito envolvia o expurgo do que considerava “impuro”. E ele encarnou a salvação para um país destroçado e humilhado. Deu do que deu. Até hoje estudiosos tentam explicar o que levou uma nação inteira a seguir um dos maiores genocidas da história.
No céu, ciclos se repetem; na terra, ressurgem as mesmas armadilhas. Quantos mortos serão necessários para despertar um povo de seu desvario? Que bofetão pode acordar um país desse transe suicida?
A compaixão é uma bênção netuniana. Que a presença dela em nossos corações nos imunize contra a frieza ressentida que nega a vida.