Dois anos antes de apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) invadirem e depredarem a sede dos Três Poderes, em Brasília, com o ardor de sacar o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) do poder, um caso semelhante aconteceu nos Estados Unidos. Em janeiro de 2021, aliados do republicano Donald Trump, então em final de mandato na presidência dos Estados Unidos, irromperam o Capitólio com o intento de impedir a certificação da vitória eleitoral do democrata Joe Biden.
Nesta entrevista, o cientista político Scott Mainwaring, professor da Universidade de Notre Dame, nos Estados Unidos, diz que os casos do Capitólio e da Praça dos Três Poderes não são isolados. O primeiro, afirma ele, influenciou o segundo pelo “efeito de demonstração”. O acadêmico define a anistia para os envolvidos no ataque de 8 de janeiro como uma ideia “horrível” e avalia que a extrema direita, seja no Brasil ou nos Estados Unidos, não tem força atualmente para suprimir ou substituir as atuais democracias liberais.
Reconhecido pelos seus estudos sobre a política da América Latina, Mainwaring foi eleito, em 2010, para a Academia Americana de Artes e Ciências. Fluente em português, ele concedeu entrevista a Zero Hora via chamada de vídeo.
Confira a entrevista:
Nos Estados Unidos, houve a invasão ao Capitólio. No Brasil, o mesmo ocorreu nas sedes dos Três Poderes. Há semelhanças nas crises democráticas?
As semelhanças mais importantes estão no fato de que, em primeiro lugar, assumiram a presidência nos dois países pessoas de posições iliberais, com tendências autoritárias fortes. Mais no caso de Bolsonaro do que de Trump, mas os dois têm traços autoritários que levaram à tentativa de não respeitar o resultado da urna. Em segundo lugar, certamente, a invasão do Capitólio, nos Estados Unidos, em 2021, incidiu no caso brasileiro. O primeiro influenciou o segundo. Não são casos independentes.
A extrema direita brasileira tem conexões com a alt-right dos Estados Unidos. Seria uma inspiração?
Na ciência política e em sociologia, temos um conceito que é o efeito de demonstração. Você percebe algo que passa no mundo, na tua vizinhança, e esse acontecimento, em outro lugar, influi na perspectiva do que é possível no teu lugar. As revoluções anticomunistas no leste europeu, em 1989, não foram fatos independentes. As pessoas, nos seus países, perceberam que começava a ser possível a autonomia da União Soviética. Isso também aconteceu na Primavera Árabe. A direita brasileira percebeu a tentativa de Trump de ficar no poder, e isso teve sua influência (no 8 de janeiro). Não sei até que ponto passou por contatos diretos. Provavelmente, passou mais pelo efeito de demonstração. Você percebe algo que passou nos Estados Unidos e pensa: "Isso é possível aqui também".
A volta de Trump à presidência dos Estados Unidos pode influenciar a América Latina?
No caso brasileiro, não sei se a influência vai ser tão forte como em outros países. Como força hegemônica, os Estados Unidos exercem um poder na América Latina. Às vezes, para o bem. Às vezes, para o mal. Não podemos descartar a possibilidade de que, se Trump estivesse no poder quando Bolsonaro fez a tentativa de golpe, talvez teria dado certo o esforço de Bolsonaro para ficar no poder. Não acho provável, mas não é descartável a hipótese. Com Joe Biden no poder, a direita brasileira e os militares entendiam que teria tido consequências negativas para o país se a tentativa de golpe desse certo.
A democracia brasileira resistiu à tentativa de golpe. Foi uma demonstração de força ou ela está fragilizada e segue sob risco?
Tendo a pensar que a democracia brasileira não corre grandes riscos no sentido clássico de um golpe abrupto. A resposta de dois atores da democracia brasileira foi muito diferente do que se passou nos Estados Unidos. Em primeiro lugar, a resposta judicial foi muito diferente no Brasil, muito mais agressiva e protetora da democracia. Podemos avaliar que a resposta judicial brasileira incorre em outros tipos de risco? Creio que sim. Mas, em termos de proteção, pelo menos no curto e médio prazo, a resposta favoreceu a democracia. A segunda resposta que foi muito diferente no caso brasileiro foi a da direita política. A direita política nos Estados Unidos, em boa parte, acolheu a tentativa golpista de Trump. A resposta da direita política brasileira foi muito diferente. Muito poucos aceitaram a tentativa do 8 de Janeiro de 2023. Nesse sentido, apesar das semelhanças, as diferenças entre os dois casos são muito grandes.
Mas avalia que a democracia brasileira ainda está fragilizada e sofre riscos?
Corre riscos, mas são mais sutis. Mais sutis em que sentido? As violações cotidianas dos direitos humanos. As violações da polícia, as violações que podem acontecer na região amazônica, os protetores dos direitos humanos, os ativistas camponeses. Violações de direitos que não são um golpe militar, mas afetam e degradam a democracia.
Existe hoje um debate no Brasil sobre julgar e punir os envolvidos no 8 de janeiro e demais tramas golpistas, o que tem prevalecido até agora, ou promover uma anistia em nome da pacificação. Qual o melhor caminho para o futuro da democracia?
A anistia é uma ideia horrível. Você não pode permitir que pessoas façam uma tentativa de um quase golpe sem punir. Um caso interessante nesse sentido foi quando Rafael Caldera, na Venezuela, chegou à presidência pela segunda vez. Isso foi em 1994. Ele anistiou Hugo Chávez. Chávez estava na prisão pela tentativa de golpe em 1992. Se você não pune as pessoas que fazem uma tentativa de golpe, as consequências para a democracia são muito nefastas.
Na Europa, a crise da democracia parece estar ligada aos efeitos da globalização, à imigração e ao empobrecimento da classe média. Existem semelhanças com o Brasil?
Nos dois casos, Europa e Brasil, há um movimento contra os avanços culturais pós-materiais. Na Europa, isso se reflete sobretudo no ódio contra os imigrantes. E também em países como a Hungria... A Hungria tem mais semelhanças com o Brasil do que, por exemplo, a Grã-Bretanha. Tanto Bolsonaro quanto Viktor Orbán (primeiro-ministro húngaro) rejeitam os avanços dos direitos dos gays, da população transexual e da cultura pós-moderna. Eles representam a rejeição desse movimento cultural. E uma boa parte da população também rejeita alguns desses avanços culturais. Os avanços culturais são polarizantes. Não são mudanças consensuais. É positivo que haja um debate sobre esses temas. O que é negativo é, precisamente, o fato de capturar a resposta e a rejeição de uma forma autoritária.
As crises democráticas podem ser resolvidas com resultados econômicos? O Brasil reduziu o desemprego e o PIB deve crescer, mas parece não estar gerando efeito. Só a economia não pacifica mais?
Passa a mesma coisa nos Estados Unidos. A economia, na maioria dos sentidos, é boa, mas a população não sente que ela vai bem. A percepção da economia passa por um processo de onde você se situa em termos políticos. Trump e a mídia conservadora nos Estados Unidos souberam transmitir a mensagem de que a economia não vai bem. De fato, há dois anos a inflação era muito elevada para os padrões dos Estados Unidos. O caso brasileiro é parecido com o dos Estados Unidos. A percepção da população conservadora não reflete o estado real da economia (nos EUA), pelo menos na maioria dos indicadores. Se a economia vai bem, a tendência é de que os governantes se fortaleçam, mas não é sempre assim.
Hoje existem os fatores culturais e a mídia. A fragmentação da mídia, a intensificação da desinformação e da mentira. No passado, a mentira foi muito comum nos regimes autoritários. A mentira existia nos regimes democráticos, mas aumentou muito nos últimos anos. Isso é possível devido à mídia social e à grande fragmentação. Nos Estados Unidos, há 30 anos, quatro ou cinco canais ainda dominavam o mercado da mídia. Não é mais o caso. E, no Brasil, se passa a mesma coisa.
A extrema direita, seja no Brasil ou no mundo, deseja o fim ou a substituição da democracia liberal que temos hoje? Há elementos para essa análise?
A extrema direita, talvez, sim. Penso que, no caso brasileiro, a extrema direita ainda não tem o poder para realizar esse objetivo. Vou falar dos Estados Unidos e creio que, provavelmente, vale a mesma observação para o caso brasileiro. A direita nos Estados Unidos quer limitar a democracia e os avanços pós-materiais. Quer limitar a capacidade de algumas populações de votar. A meu ver, é um exagero dizer que a direita dos Estados Unidos quer acabar com a democracia. Alguma parcela da direita, sim. A extrema direita. E, tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos, acho que ela não tem a capacidade para isso.
O que seria capaz de revigorar a democracia?
A democracia, para ser bem-sucedida, precisa ser inclusiva em matérias políticas, sociais, culturais e econômicas. A esquerda nos Estados Unidos cometeu erros. Foi muito longe em alguns temas que levaram à rejeição. É preciso inovar, incluir, mas você não pode ser uma vanguarda democrática com posições que a grande maioria da população rejeita. Algumas questões identitárias, como, por exemplo, a expressão latinx (neologismo neutro para se referir a grupos de latinos e latinas nos Estados Unidos em vez de latino). Foi um conceito bem-intencionado, mas 90% da população latina nos Estados Unidos o rejeita. Esse tipo de colocação provoca perplexidade. Existe a expressão "elite das costas", das duas costas dos Estados Unidos, a Atlântica e a Pacífica. A ideia é de que são pessoas que não entendem nada sobre o que se chama de povão no Brasil. Não entendem as preocupações e o cotidiano.