*Pra ler ouvindo Blues do elevador, de Zeca Baleiro
Véspera de Natal. O primeiro personagem dessa crônica está sentado sozinho, em um restaurante, ocupando uma mesa de quatro lugares. Não espera por ninguém, porque não tem a quem esperar. Veste bermuda e camisa bem alinhadas. Usa tênis sem cadarços, desses modelos mais confortáveis, que lhe confere um ar mais jovial apesar dos cabelos brancos, que tentam, sem sucesso, esconder-lhe a calvície. Barba feita, domina com classe e elegância a etiqueta à mesa — inclusive com o uso do guardanapo de tecido sobre o colo.
Serve-se de galeto, polenta com queijo, spaghetti e tortéi ao molho vermelho. Dispensa a salada de radicci. Harmoniza o almoço com uma garrafa de vinho tinto, da uva Tempranillo, que dizem combinar melhor com cordeiro ou arroz de pato. Pouco importa. Escolheu sentar-se no fundo do salão, mas de frente para a porta. Parecia fazer questão de mostrar que não se importava com quem entrasse, dando de cara com ele sozinho à mesa. “Pobre senhor”, pensaram muitos que o olhavam sentado ali, desacompanhado.
Véspera de Natal. O segundo personagem vaga sozinho pela Rua Vinte de Setembro. O senso comum diz que este cidadão é o típico Zé Ninguém. “Caminhando contra o vento, sem lenço, nem documento”, como canta Caetano. Barba desgrenhada combinando em tom e estilo com a cabeleira grisalha. Bermuda e camiseta rotas lhe conferem um ar ainda mais indigno. A cada passo (ou arrastar dos chinelos sobre a calçada quente) ressoa o som das latinhas de alumínio que carrega sobre os ombros em um saco plástico.
Olhar frio, atônito, vago, sôfrego, arredio? Podem ser sinônimos e pode ser tudo ao mesmo tempo. Mais assertivo, talvez, dizer tão e só: perdido. Revirando lixo, entulho e dejetos que não servem pra mais ninguém além do exército de zés-ninguém, o homem cata daqui e dali um resto de comida pra matar a fome — ou seria a angústia da fome? Nessa travessia de meia dúzia de quadras que o assisti percorrer não o vi beber uma só gota de álcool ou fumar um cigarro que fosse, tampouco usar nenhum narcótico. Encarou o sol escaldante, inclusive, sem nenhuma gota d’água.
A quem cai melhor a solidão? Ao Zé Ninguém ou ao cidadão distinto? Solidão é solidão. Não reivindica classe social. Não distingue gregos de troianos. Dilacera a alma dos que têm fome com a mesma impávida lâmina com que apunhala os que aproveitam da mesa farta. Apesar da aparência controversa, os dois são assombrados pela morte dos que já partiram dessa pra outra vida. Ambos foram deixados pra trás.
Invocando o Zeca que canta com a língua afiada mais cortante que um velho blues: “Ora quem é que não sabe / O que é se sentir sozinho / Mais sozinho que um elevador vazio”. Estendo meu abraço apertado a todos que perderam um amor em 2023, 2022, 2021, 2000... (até o infinito do passado e além), e se sentirão sozinhos na simbólica entrada de 2024. Está mais do que na hora de reinventarmos o velho bordão: apesar da saudade, estar só também é estar bem acompanhado.