A vida é feita de instantes. Os instantes nos definem. Não colhemos sorrisos ou desaforos a granel. É aquele sorriso, de soslaio, naquele pôr-do-sol, antes daquele beijo. Nem sempre é o livro inteiro, mas uma frase, lida naquele dia em que nada parecia fazer sentido e, por conta dela, tudo se revela mais terno e doce. Lida noutro dia não teria significado nada.
É difícil perceber que o “parabéns a você” é protocolar. Apesar de efusivo, carrega em si a frieza da hora marcada, quase como um rito religioso. Anualmente, sem falhar. “Parabéns”. “Te amo”. “Obrigado por existir”. “Maravilhosa”. “Tão bom te ter por perto”. Dito isso, com hora marcada dá pra sentir como soa frio e sem graça, né? “Acaricia o ego”. Concordo. Mas, por que tem de ser com hora marcada?
Aquele aniversário pode ser especial? Pode, justamente por causa de um instante específico. Não é a celebração em si que te faz registrá-la no baú de memórias. É por causa do abraço demorado que parece ter feito o tempo parar e realinhar as órbitas dos planetas. Talvez tenha sido a presença inesperada de alguém ou o presente que só aquela pessoa (especial) poderia te dar. Ou ainda, porque ele te convidou pra jantar justamente na véspera do aniversário, porque pouco importa o que diz a certidão de nascimento.
Todo mundo tem amigos que combinam de se reunir pra celebrar a vida – e nunca se encontram. Os convivas trocam mensagens, recordam de instantes queridos, outros ácidos e imperfeitos, e compartilham da saudade. Uns choram, outros riem. E tudo permanece ali, no mundo das mensagens virtuais, lugar de desculpas e esquivos. Daí alguém lembra que a vida é feita de instantes. E fica tudo bem. Porque tá tudo bem a gente não se encontrar. Serve de quê o peso da culpa da gente nunca se ver? Porque um mora em Sampa, outro em Porto Alegre, outro em Floripa? E tá tudo bem. Prefiro que não saia o tão falado jantar do que aconteça por obrigação. Protocolar e frio. Alguém já se deu conta de que é mais barato fazer confraternização em abril do que em dezembro?
Lembro de sair do cinema – depois de assistir Lavoura Arcaica, filme-poesia do Luiz Fernando Carvalho a partir da obra transcendental do Raduan Nassar – e de me sentar no balcão do Zaraba. Pedi uma cerveja. Logo a seguir, o Moishe sentou-se ao meu lado, em silêncio. Pediu também uma cerveja. Trocamos olhares. Talvez eu tenha dito algo como “Bah, que paulada”. E o Moishe, certamente disse: “Poesia pura.” De bate-pronto, pedi duas purinhas. A Luci nos serviu. Brindamos, bebemos e distendemos o tempo, conversando por horas sobre a obra-prima que o Luiz Fernando havia nos oferecido por uns trocados de reais.
E toda vez que revejo o filme, lembro do Moishe dizendo: “Poesia pura”. Então caríssimos e caríssimas – os poucos que me dão a honra da leitura semanal neste pequeno oásis que cultivo com tanto carinho – que em 2024 a gente possa colher mais instantes únicos, mesmo que fugazes. Porque, no final das contas, ali, na borda do caixão, ninguém será lembrado pelas décadas que sobreviveu, construindo seja o que for. Seremos lembrados pela lista de preciosos instantes precisos que compartilhamos ao lado de quem mereceu caminhar do nosso lado. E daquele “eu te amo”, dito com a verdade que nos arrepia só de lembrar.