E se não morrêssemos? De morte nenhuma? Nem de peste ou praga, nem de tiros, granadas ou bombardeios. E se fôssemos imaculados e revestidos de uma aura indestrutível, que nos tornasse perenes por todo o sempre e até sei lá quando, porque qual seria o sentido de contar dias e noites se nunca, nunquinha morrêssemos? Pra que vacina ou penicilina se doença nenhuma nos abalasse? Febre? Piada, né. Indestrutíveis não ardem em febre e, sendo assim, nenhum analgésico precisaria ter sido inventado.
Cada um de nós seria uma espécie de deus, imunes a todo tipo de desgraça, conflito ou guerra. Ciclones, nevascas, terremotos, tornados ou tsunamis. Toda essa desordem climática destruiria apenas prédios, bairros ou até cidades. Tudo debaixo d’água. Menos nós, seres humanos incautos, cândidos e blindados. E como não morreríamos, seríamos eternos.
Serviria de que comemorar aniversário, então? Parabéns, Fulano, pelo milésimo terceiro ano de vida. És um guri, retrucaria o Sicrano. Com que idade ficaríamos velhos? Com que idade poderíamos ter desconto pra ir ao cinema? A mesma idade com a qual poderíamos estacionar nossos carros na vaga de idosos? E a calvície? Já que não morreríamos, daria pra pôr um fim na queda de cabelo que denota o avançar dos anos? Ou sei lá, já que não precisaríamos investir tempo e dinheiro pra fabricar remédios, não daria pra inventar um milagroso método de reflorestamento capilar?
Não tô sozinho nessa viagem transcendental. Os gregos exercitavam a fissura pela imortalidade criando seres divinos que viviam no Olimpo. O chefão era Zeus, o deus dos deuses. Ou seja, o mais imortal dos imortais. Dizem que o bordão “não tá morto quem peleia” é inspirado na gauderiada. Na verdade, esse era o lema do Olimpo, proferido por Zeus a cada amanhecer. Aí vem a Marvel e cria o seu panteão de heróis imortais e a lista é zilhões maior do que a dos gregos. Do lado de cá, há quem defenda que o General Neto (herói Farroupilha) faria tremer o panteão de imortais da Marvel. Te mete pra ver.
“E se não morrêssemos?”, mote inicial dessa crônica, foi o que motivou José Saramago a escrever As intermitências da Morte. O livro começa cortante: “No dia seguinte ninguém morreu”. E não morrer, acreditem, gerou um turbilhão de conflitos. “Que irá fazer a igreja se nunca mais ninguém morrer”, questiona o ministro à santa eminência. De bate-pronto, a eminência retruca: “Devolvo-lhe a pergunta, que vai fazer o estado se nunca mais ninguém morrer”. Saramago se ligou no conflito: tente não morrer pra ver o que é bom pra tosse.
Na contramão dessa viagem filosófica, Assis Valente, que via samba até na desgraça, resolveu curtir a vida antes do fim dos tempos. Beijou na boca de quem não devia, perdoou a ingratidão de um desafeto e gastou o dinheiro que não tinha, tudo porque o mundo ia se acabar. E como não se acabou, Assis, profético bradou: “Vai ter barulho e vai ter confusão”. Saramago e Valente, mesmo por caminhos tortuosos, sacramentaram a sina da baderna, dentro e fora da imortalidade.
Resumo da história: que a vida seja uma festa, porque, imortais ou pobres mortais, o que não mata, vira crônica.