No radar da crônica, ensina Rubem Braga, cabe tudo o que não é crônico. E quando o crônico reverbera em moto contínuo, professor? E quando o crônico invade a nossa retina embaralhando a poética de um entardecer primaveril permeado da úmida nebulosa metamorfoseada em neblina invernal? O crônico esfrega na cara da crônica o imponderável, atravessa o ventre da crônica como uma adaga de dois gumes, ceifando a vida ordinária e banal. Abortando o efêmero.
A lesão do Neymar, o empate do Juventude, a ascensão do Caxias pra série C. Tudo efêmero e banal. Não foi a primeira, nem será a última lesão do menino Ney. Não foi o primeiro, nem o último empate do alviverde. Tá, é a primeira vez que o Caxias sobe de série, mas haverão outras oportunidades. Talvez no próximo eclipse solar. Tudo é uma questão de fé.
Fé? De que fé estamos falando? Da fé amarrada numa encruzilhada? Da fé pregada numa cruz de madeira? Na fé de que uma granada tem o poder de abrir o caminho para a vinda do Messias? Messias de quem? Qual fé, cara pálida? Na fé de que os espíritos da floresta estão chacoalhando a Terra pra dizer que o céu vai cair? Antes da queda, contudo, chovem mísseis.
Do lado de cá, no Sul do Brasil, a chuva torrencial abre veias sobre a terra e devasta o que estiver atravancando o seu caminho. Do lado de lá, na Amazônia — o centro do mundo — padece da maior seca em mais de cem anos. A profecia de Antônio Conselheiro, “o sertão vai virar mar e o mar vai virar sertão”, com requintes de crueldade, está se desenhando diante dos nossos olhos. “Porque se a floresta for completamente devastada, nunca mais vai nascer outra”, alerta o xamã yamomani Davi Kopenawa.
Nunca mais. Pois é. Nunca mais é a sopa fria do menu. Quase sempre sem graça. Nunca mais é sorvete derretido sobre o asfalto. É o retrato do horror estampado na face de uma criança que apanha porque mora do lado que o outro diz que é a sua terra. Nunca mais. Quem dera. Nunca mais um ser humano balear outro ser humano por causa do pó da terra. “Ainda somos os mesmos”, já dizia Belchior.
Como afastar as taças da ira de Deus, como preconiza o apóstolo João no Apocalipse — inevitável pra quem? Como interromper a iminente queda do céu? A temperatura dos mares está aquecendo. E vai aquecer ainda mais, muito antes do anticristo da Bíblia desferir suas atrocidades.
A crônica, espaço que comporta tudo que não é crônico, está combalida. O Neymar, eterno esboço de craque, não importa. Deixem ele curtir a vida adoidado. E pouco importa, de verdade, a fé de cada um, porque os gritos, sussurros e gemidos — de todas as eras — ecoam desde o dia em que primeiro ser humano matou seu vizinho, porque queria estender os limites dos muros de sua terra. Desde então, o mundo nunca mais foi o mesmo.
Qual é o preço da redenção? E pra quem, cara pálida?