Há 16 anos o céu de brigadeiro, típico de primavera, foi tragado pelas nuvens cinzentas e pesadas, carregadas de chuva e mistério. Do alto do arranha céu, através da janela do hospital eu perdia-me na paisagem do Guaíba.
Passei meses ali, revezando os cuidados do meu pai. Quase podia esquecer da finitude, da areia na ampulheta correndo veloz. Cada minuto ali com ele era como se revisitasse a infância, com seus sabores e aromas. Ríamos e conversávamos sobre as coisas mais triviais.
— Tá frio lá fora, filho?
— Hoje não, pai. Fez sol. Mas não tava quente, viu. É início de primavera.
— Sabe quem joga hoje?
— Não sei, pai. Deixa ver. Vou ligar a TV.
Nos primeiros minutos de jogo ele já dormia. Entorpecido de remédios que não curam, o sono vencia até o interesse dele por ver uma partida de futebol. Meu pai dormia e eu escrevia. Registrei boa parte dessa atmosfera em um blog. Lembro de atravessar a madrugada na véspera de sua morte ouvindo a trilha sonora composta por Nino Rota para o filme La Strada, de Fellini.
“Alguém aí poderia dizer pra ela que eu gostaria muito de ouvi-la tocar o tema do filme?”, escrevi, enquanto observava meu pai dormir.
O pôr do sol nessa imensidão do Guaíba é inesquecível. Amanheceu o dia seguinte e o sol não veio. Voltou a chover, a fazer frio. Voltou a estranha sensação de gosto ruim na boca, de leite talhado. Voltou aquela apatia no ar. Através da mesma janela eu não via a paisagem do Guaíba. E no final do dia não tivemos pôr do sol.
Naquele dia, o sol se pôs mesmo antes de nascer. Pelo menos foi assim no dia em que ele morreu. Uma neblina tímida surgiu lá do horizonte, logo cedo, e veio se arrastando por sobre o Guaíba. Havia um peso no ar, mas ao mesmo tempo uma quietude tomava conta de mim. É estranho explicar. Pra não deixar escapar a sensação, escrevi naquele dia:
“Essa neblina talvez seja só uma cortina. Quem sabe um portal? Vem pra iluminar e não cegar. Vem pra irradiar a paz, não semear a discórdia. Vem pra nos dizer o quanto somos só uma pequenina parte dessa imensidão. Vem pra nos dizer que sozinhos somos só partículas quase sem sentido, quase sem importância. Vem pra nos dizer que juntando cada partícula somos essenciais uns pra vida dos outros”.
Escrevo sobre essas memórias na quarta-feira, à noite. Chove lá fora. Não está tão frio quanto há 16 anos, quando, pra espantar o frio, meu pai pediu canja de galinha. Tenho certeza de que preferia agnolini. Impossível encontrar agnolini num hospital, quanto mais em Porto Alegre. Ninguém, apesar do quadro clínico, pensava que aquela poderia ter sido a sua última refeição. Acho que ele sabia. Talvez por isso sorriu enquanto jantava e preferiu que minha mãe ficasse com ele naquela noite. Na última noite.
Relendo o que escrevi naqueles dias, encontrei uma frase que não sintetiza sua vida, mas dá uma bela pista de quem foi o Claudio: “Deus estava louco pra conhecer o homem que, na sua simplicidade, transformou não só a sua vida, mas a vida de muita gente”.
E ainda chove lá fora.