Na última sexta-feira (22), durante um bate-papo literário, um dos temas mais pertinentes (para além da obra Mil folhas, do Carlinhos Santos) é também uma das perguntas que sacode os templos acadêmicos: afinal de contas, o que é crônica?
Em tom poético, o crítico literário e ensaísta Antonio Candido (1918-2017), diz que a perspectiva dos cronistas não é escrever “do alto da montanha, mas do simples rés do chão”. Defende ainda que “a crônica não é um gênero maior”, em comparação aos “grandes romancistas, dramaturgos e poetas”, pois ninguém pensaria em dar um Prêmio Nobel a um cronista. “Portanto, parece mesmo que a crônica é um gênero menor”.
Seu Cândido assistiu em vida ruir parte dessa argumentação quando a jornalista — e cronista bielorrussa — Svetlana Alexiévitch recebeu, em 2015, o Prêmio Nobel de Literatura. Vozes de Tchernóbil, um dos livros mais conhecidos da autora é tratado por ela como a “crônica do futuro”. Interessante, né, Candido?
Saindo do campo acadêmico — por vezes áspero e espinhoso, em uma trilha repleta de armadilhas, onde um cronista de jornal, como eu, é alvo fácil de pesada artilharia — assino com quem escreveu (e ainda escreve) suas triviais observações em páginas obsoletas dos periódicos.
Rubem Braga, a quem Sérgio Porto chamava de Sabiá da Crônica, reconhecido por acadêmicos, transeuntes literários, intelectuais e toda sorte de boêmios como o “cara” da crônica, tinha uma explicação divertida e perspicaz para explicar o não-dito: “Se não é aguda é crônica”.
Na esteira dessa contravenção vem o Fernando Sabino, amigo de botequim de Braga e Paulo Mendes Campos. Sabino é enfático e quase impossível de rebater (até o L.F. Verissimo reconhece): “Crônica é tudo o que o autor chama de crônica”. Seguindo nesse tom bem humorado, Mendes Campos disse, simplesmente, que “crônica são duas laudas de papel em branco”, singular como “é a azeitona do pastel cultural” e que serve bem de “tempero da massa noticiosa”.
Em versão cronista, Clarice Lispector talvez tenha sido ainda mais explícita ao revelar-se diante do leitor nessa despretensiosa conversa, entre um gole e outro de café. A respeito dessa dita leveza que suscita da crônica, disse: “Descobri que sou suportável, às vezes até agradável de ser”.
Eliane Brum, leitora de Clarice, em um estreito diálogo com ela, diz que “é preciso desacontecer para alcançar a delicadeza dos dias”. Até porque “os robôs já existem, é preciso reinventar os humanos”, provoca Eliane, que se reconhece “um tipo multipolar” enquanto cronista.
Julián Fuks, da mesma geração de Eliane, toma de assalto o olhar perspicaz da autora e, resignado, escreve: “Não existe crônica no presente, nosso mundo em estado crônico não a comporta”. Debruçado num cândido pessimismo, sentencia: “Devota da lentidão, apreciadora da indolência e da preguiça, a crônica já não resiste à velocidade, aos imperativos da produtividade. A crônica não sabe existir neste mundo alucinado que já não alucina”.
Svetlana responde a Fuks que o mundo alucina, sim: “Antes de tudo, em Tchernóbil se recorda a vida ‘depois de tudo’: objetos sem o homem, paisagem sem o homem. Estradas para lugar nenhum, cabos para parte alguma. Você se pergunta o que é isso: passado ou futuro? Algumas vezes parece que estou escrevendo o futuro”. O livro é “sobre a vida ordinária de pessoas comuns”. Assim como a crônica.