E se minha avó Pierina tivesse dominado as letras? Penso sobre isso enquanto leio Conceição Evaristo. Não falo isso porque gostaria que a Conceição fosse a minha avó. Digo isso porque gostaria que a Pierina tivesse tido a oportunidade de ficar mais tempo na escola aprendendo a construir frases que pudessem ressignificar o sentido de sua vida. A escola salvou a Conceição e ativou nela a urgência de virar professora. Conceição gostou dessa vida debruçada em livros, de ser levada pelas metáforas (mesmo as mais difíceis de lidar na pele). Da graduação em Letras virou mestre e depois doutora em Literatura.
“O que a minha memória escreveu em mim e sobre mim, mesmo que toda a paisagem externa tenha sofrido uma profunda transformação, as lembranças, mesmo que esfiapadas, sobrevivem. E na tentativa de recompor esse tecido esgarçado ao longo do tempo, escrevo. Escrevo sabendo que estou perseguindo uma sombra, um vestígio talvez”. E te leio, Conceição, como quem persegue a minha avó Pierina através dos vestígios que tu deixas aqui e ali.
Sempre que passo em frente à velha casa de madeira onde meu pai, tios e tias viviam com meus avós, Júlio e Pierina, sou tomado pelo aroma do pudim, servido religiosamente aos domingos. Fecho os olhos e lembro da suavidade da mão da minha avó deslizando sobre a minha face, enquanto perguntava se eu queria mais um pedacinho de pudim. Quando Pierina não estava na cozinha, ao redor do fogão à lenha, era porque tinha ido à horta, colher verduras ou hortaliças, ou então, enterrar o lixo orgânico pra servir de adubo pra terra. E isso diz muito sobre ela.
“Queria uma vida que valesse a pena. Uma vida farta, um caminho menos árduo e o bolso não vazio”, escreve Conceição, num dos contos do livro Olhos d’água. A vida tornou-se menos áspera na casa da minha avó quando os filhos, todos trabalhando desde cedo, começaram a ajudar com as despesas.
Lembrei agora da minha avó estendendo lençóis num varal, depois de fervê-los numa panela enorme, em cima do fogão à lenha. Era pra deixar “bem branquinhos”, me dizia ela. Havia tanta doçura nos lábios dela que os diminutivos lhe caíam bem. Pra minha avó eu sempre fui o Marcelino. “Gosto de ver as palavras plenas de sentido ou carregadas de vazio dependuradas do varal de linha. Palavras caídas, apanhadas, surgidas, inventadas na corda bamba da vida”. Conceição, Conceição, como é que a senhora escreve assim, como se entrelaçasse suas histórias nas da minha avó?
Costurar. Sim, a minha avó também costurava. Com ou sem a máquina, que ficava num dos quartos, junto à cozinha. E tinha como não costurar? Quem remendaria as camisetas rasgadas, ou quem faria dos trapos uma quentinha colcha de retalhos pra espantar o frio? Escrever é como costurar? “A escrita pode eternizar o efêmero...”, ensina Conceição.
Pois é, Pierina. Penso em como teria sido ler o que os teus olhos sempre me esconderam. Eu nunca consegui decifrar o mistério represado no teu olhar. Havia tanta, tanta doçura em ti, vó. Mas, de alguma forma eu sei que o teu peito carregava dores que tu nunca permitiu que viessem à tona.
“Eu aqui escrevo e relembro um verso que li um dia ‘Escrever é uma maneira de sangrar’”. Obrigado, Conceição, por verter pela minha avó Pierina.