Arquitetura da Felicidade
Hoje é dia de apresentar o arquiteto e urbanista Fernando dos Santos Rocha Machado, filho de Adão de Souza Machado e Maria Rachel Visintainer dos Santos Rocha (in memoriam). Nascido em Porto Alegre e pisciano da próxima sexta-feira, 19, é um dos nomes que faz história na preservação e no conceito da arquitetura em Caxias do Sul. É casado com a também arquiteta Rovena Schumacher e pai do jovem Vicente Schumacher Machado. Caxiense por adoção, aqui formou família e foi acolhido, tem bons amigos e é grato pelo crescimento pessoal. Profissional de destaque, Fernando tem mestrado em Teoria, História e Crítica pela UFRGS e sempre foi um apaixonado por pesquisa e conhecimento e contou que pretende fazer doutorado, algo que o período de recesso social facilitou pela ampla oferta de conexões internacionais. Isso, se a intensa agenda de nosso entrevistado permitir.
Qual sua lembrança mais remota da infância? Meus pais reunidos na sala de casa abrindo um licor e assistindo ao pouso da Apollo 11 na Lua, transmitido pela televisão.
Qual o mais importante arquiteto do mundo e sua grande obra? Arquitetura é um campo de conhecimento e produção amplo, não se pode falar em uma única pessoa, nem um grupo. Há alguns que historicamente tiveram muita visibilidade, ou produção teórica que realmente mudou a forma com que projetamos. Hoje, já não há mais isso, a imensa massa de obras pouco conhecidas, mas de qualidade, impede rotular.
Qual a passagem mais marcante da tua biografia? Quando fui de navio, trabalhando como faxineiro para pagar a passagem, para a Europa, aos 20 anos, e passei mais de um ano sabático, porém trabalhando, na Inglaterra, como office-boy, e na Suíça, em uma cave de vinhos, pena que na época não apreciava vinhos como os aprecio hoje. O timing de nossa vida nem sempre é sincronizado. Viajei por muitos países, algo que mudou minha visão sobre o mundo.
Quais conselhos daria para quem deseja ingressar nessa profissão? É mais do que um trabalho, é na verdade uma bela forma de passar o tempo, porque envolve criação, então, mesmo que tenha momentos entediantes como qualquer outra profissão, é na verdade uma atividade muito prazerosa e envolvente.
Qual sua primeira produção como arquiteto profissional? Foi o projeto de um prédio comercial que criou muita polêmica entre arquitetos, porque representava uma tendência nova na época, o pós-modernismo, que muito cedo ficou datado, hoje o abomino, mas felizmente o prédio continua interessante, porque não exibia os traços caricatos associados a esse estilo.
Como vislumbra a cena de arquitetura contemporânea no Brasil? Com otimismo, há toda uma geração de jovens arquitetos antenados com a responsabilidade que está implícita em nossa atividade, principalmente responsabilidade em relação a um mundo que enfrenta sérias e reais ameaças ambientais e sociais, causadas pelo nosso modo de vida até então inconsciente de suas consequências.
Como a arquitetura e a arte impactam a sua vida? Sem as duas, minha vida seria muito pobre, no sentido existencial - não o financeiro - uma vez que ambas são reflexos do que a humanidade tem de mais elevado, habilidades sofisticadas, que são a ideação e criação.
E quais foram seus primeiros trabalhos que lhe garantiram projeção e visibilidade? Uma loja de sapatos de design cuja cliente queria algo de vanguarda, e o resultado foi muito divertido, as pessoas adoravam por ser diferente do que haviam visto, por exemplo, o banco para provar calçados media três metros de comprimento era uma versão de uma vaca linear, com couro natural e peludo. A casa noturna iT Club, que também era muito sintonizada com o que se fazia em Londres e Amsterdam, foi multipremiada, publicada na Alemanha, e nos abriu uma longa temporada de projetos de casas noturnas pelo Brasil. Tínhamos que viajar muito a vários países e pesquisar os locais mais antenados, as festas, o que foi uma época muito variada e divertida.
Acredita em casa ideal? Como é a sua? Casa ideal é aquela que a gente sonha, então não é só uma construção física, é muito mais uma ideação de desejos e expectativas, representativa de valores que imaginamos adequados para nossa vida, como um todo, por isso é sempre uma projeção, um experimento, uma extensão física de nossa existência. O filósofo Alain de Botton expressa muito bem isso no seu livro “Arquitetura da Felicidade”, que, aliás, recomendo, por ser um livro muito gostoso de ler, não dirigido a arquitetos, mas ao público. O bom é que sempre se experimenta, em busca disso, e alguns resultados são bem gratificantes, as pessoas nos agradecem, suas vidas se enriquecem nesses artefatos que criamos, em geral de formas inesperadas para eles. A minha casa ideal é muito aberta, muito vidro, totalmente interligada com a natureza, e que respeita o espírito do local onde se insere.
Qual foi o último achado para sua casa? Um conjunto original de quatro cadeiras Ouro Preto (1960), em jacarandá, do designer Michel Arnoult, que agora restauraremos.
Qual obra de arte gostaria de ganhar ou comprar? “Ondina”, do Walmor Corrêa, pintor brasileiro.
Como exercita a criatividade estando em casa, neste recesso social? Costumo desenhar e pintar, desde criança, isso me acompanha, volto a isso quando preciso de alívio. Ler também, leio muito, conhecimento é alimento essencial, não pode faltar.
Uma peça de design atemporal: todos os do designer dinamarquês Arne Jacobsen
Um projeto dos sonhos? Centros culturais, museus e templos religiosos.
Qual a importância do design como fator de identidade de um povo, de uma cidade? Total. O design é uma forma de expressão cultural também, não só utilitário. E, na cidade, arquitetura é o substrato da memória, antiga e atual, que define identidade. Algo que muda todo o tempo, se não tem identidade, não se sabe quem é.
Qual foi o projeto de maior desafio? E o que te trouxe maior satisfação ao concluir? Um complexo esportivo de 3,8 hectares com inúmeros prédios como pavilhão de piscina olímpica térmica, com padrões de excelência internacionais, academia, prédio administrativo e memorial, que realizamos para o Recreio da Juventude, na Sede Guarany. Nos envolveu de forma intensa, por exigir arquitetura de ponta, tecnologia de construção, design com preocupações de real sustentabilidade, paisagismo, acessibilidade universal. Foi um desafio em vários aspectos, trabalho intenso, muito gratificante.
Filme para assistir inúmeras vezes: “O Desprezo”, de Jean-Luc Godard, 1963.
Se pudesse voltar à vida na pele de outra pessoa, quem seria? Na pele de Fernando, porque não sou o mesmo Fernando de há dez anos, de há trinta. Nunca somos uma pessoa só, durante a vida, isso é muito interessante.
Fontes de inspiração? Viagens, festivais de arte, galerias, museus. Hoje, como tudo isso está difícil, de maneira virtual, o Tumblr, Eventbrite e o Are.na ajudam.
Uma palavra-chave: autenticidade.
Lugar preferido em casa? O deck que fica na altura da copa das árvores, onde leio, ouço música, observo a vida silvestre. Tenho famílias de cotias, tatus-bola, saruês, pássaros, muita mata e silêncio, como vizinhos
Qual a primeira coisa que vai fazer depois que a epidemia acabar? Abraçar com força os amigos, dançar, comemorar e celebrar a vida.
Uma mensagem aos leitores: não nos levemos muito a sério, paciência, essa distopia vai passar.