No dicionário de Marco, o mundo!
Marco de Menezes nasceu em Uruguaiana, mudou-se para Caxias do Sul em 1985, cursou Medicina e onde atua como médico do SUS há cerca de 25 anos. Com especialização em Informação e Informática em Saúde pela Fiocruz, Homeopatia pelo CEGEPH, e concluído igualmente formação em psicanálise pelo CEPdePA, faz mais. Atualmente coedita o selo Fresta, com Camila Cornutti, André Ricardo Aguiar e Natália Borges Polesso. Publicou diversas obras de poesia, entre elas: “As horas dragas” (1999), “Pés de aragem” (2007), “Fim das coisas velhas” (2009 – vencedor do Prêmio Açorianos de Literatura nas categorias ‘Poesia’ e ‘Livro do Ano’, em 2010), “Ode paranoide” (2010), “Pequena madrugada antes da meia-noite” (2016) e “Como se constrói uma melancolia de domingo” (2019). Como letrista, foi coautor, com Vinicius Todeschini, do álbum Arrebaldeação (2003). Casado com Camila Cornutti desde 2007, tem dois filhos, João Caetano e Cecília.
A de ábaco, abadia, Abissínia, abricó: palavras da página inaugural de uma enciclopédia da infância – e incrivelmente essas palavras todas um dia remeteriam a Arthur Rimbaud, ainda oculto na biblioteca de casa, mas já enfeixando raios dissolutos na direção do menino.
B de bondade: palavra que foi destruída por aqueles que falam em nome dela.
C de coisa: tudo o que há e tudo o que não há, nome dado àquilo que tem muitos nomes, não tem nenhum, ou cujo nome não pode ser inventado, ou cujo nome inventado será ilusão, como é ilusão que uma coisa corresponda a um nome, ilusão a qual nos apegamos como a uma tábua ou a uma corrente, a depender da situação.
D de dinheiro: papel esquisito com cheiro de carne, costuma erguer e destruir coisas belas; há essa curiosa expressão, no entanto: “hoje não estou no meu dinheiro”; e há, com Marx (é 1867 e é 2021): “o capital nasce a pingar dos pés à cabeça, por todos os poros, com sangue e suor”.
E de esquecimento: normalmente é o que encontram, por detrás de todas as máscaras, os que anseiam por imortalidade.
F de folha: origem, vida frágil atravessada pelo mundo, “ser pássaro sem poder voar” (Emanuelle Coccia), extraordinária superfície verde que se abre para o céu e constrói o clima.
G de gato: Behemot, Resmungato, o gato de Alice, o gato de Poe, o gato feminino com olhos de aço e ágata de Baudelaire, o gato triste de Szymborska, Aldir e Dolores, nossos gatos; se um dia resolvessem cruzar um gato e um homem, seria bom para o homem e ruim para o gato (Mark Twain) – se bem que atualmente se forem cruzados um homem e uma gelosia, certamente a gelosia sairia perdendo horrores.
H de “–Hein?!”: interjeição de não entendimento, usada várias vezes ao dia; disco estupendo de Nei Lisboa, onde comparecem os seguintes versos: “É sempre meio-dia” e “Bem no fim do dia / O mundo se escondeu”.
I de insônia: treva de 4 folhas, prima-irmã do medo, pequeno general derrotado cujas tropas fornecem-lhe o devido enforcamento; é mentira que algo de bom reste depois de uma noite de insônia – possivelmente te ocorreu um grande poema de horror e espanto, mas o braço estava cansado demais para alcançá-lo.
J de jazz: a grande aventura sonora do cruel século XX, junto com o samba, com o qual divide muitas afinidades e diferenças; invenção, fratura, lirismo, incompreensão, heroína, ritmo, fragrância, emoção, radicalidade, dureza, fortuna, acaso, destino.
K de “Kind of blue”: comece por aqui no jazz e pode ser que o odeie para sempre, mas não é o que normalmente acontece – esse disco é um verdadeiro serviço de utilidade pública ao jazz.
L de livros: em tempos como o nosso, são uma das primeiras coisas a serem queimadas antes de pessoas começarem a queimar pessoas.
M de mar: o mar e sua antiga mensagem incompreensível, cujo som abafa as humanas vozes.
N de noite: primeiro a noite nos ensina a dormir, depois nos ensina a acordar; noite, que à vezes se chama de número, mas que à vezes se chama de nada.
O de olho: vê o mundo, para mais e para menos, mas ainda assim só vê o que pode, não além ou aquém, e no entanto é uma máquina maravilhosa com a qual o universo pode mirar a si mesmo.
P de pedra: a nossa maior cúmplice indiferente é a pedra, que está a poucos metros abaixo da terra em que nos dissolveremos um dia e, também, flutua silenciosamente acima de nossas cabeças.
Q de quase: tudo neste mundo é quase: chegando lá, não era lá, mas era quase.
R de Rio Branco: bairro (rio) que antes me trouxe os amigos poetas e, agora, me dá bastante trabalho.
S de serpente: o “s”, todos sabem, sibila pois é uma serpente assassina; há cidades-serpente e há uma serpente que mora no olho do gato; há a serpente no cetro, há a serpente mãe de todos os prazeres, há a serpente na mão daquele que se deixa picar; mas há a herpetologia, ramo da biologia que estuda anfíbios e répteis, entre estes as serpentes (curiosamente o herpes em alguns lugares é chamado de cobreiro).
T de “Tlön, Uqbar, Orbis Tertius”: primeiro conto de Ficciones, de Borges (1944), se não considerarmos o prólogo como um dos contos do volume, o que em se tratando de Borges há sempre que colocar sob suspeita; segundo o autor, este conto magnífico foi concluído em meados de junho de 1940 em Salto Oriental, cidade uruguaia distante poucos quilômetros da pequena vila de Tomás Gomensoro, onde, por sua vez, nestas mesmas manhãs, meu bisavô paterno preparava o fogo para tomar seu café de cambona; poucos quilômetros ao norte, mais propriamente no lugarejo de Adolfo Stern, em uma destas mesmas manhãs, o corpo de “Cara de Capincho”, um primo de minha mãe (que ainda não havia nascido), era encontrado às margens do arroio Sanchuri, com um cone de metal do diâmetro de um dado em dos bolsos.
U de Uruguai: o rio e o país – o rio pelo símbolo e pela imagem, pelo que vi em suas margens e pela permanência enquanto face que observa; o país pela gentileza e pela generosidade.
V de voragem: Rimbaud sofreu a voragem do deleite, “Cara de Capincho” a do arroio, Chet Baker a da heroína, Elvirita a das aves de Cohauila; João Gilberto recusou a voragem.
W de Walser, Robert: mestre de Kafka (que, como este, rechaçou a fama e o reconhecimento), e morreu caminhando na neve ao redor do hospício de Herisau onde permaneceu internado por muitos anos, praticando a arte de seu próprio desaparecimento.
X de xis: o de comer.
Y de “y”: em guarani significa água e pronuncia-se com a língua no céu da boca.
Z de “Zingaro”: canção de Antônio Carlos Jobim, também conhecida como “Retrato em branco e preto”, com letra de Chico Buarque; sugere-se humildemente as versões de João Gilberto (em Amoroso), de Chet Baker e grupo (em Let’s get lost) e da inesquecível Elvirita Magnano (em gravação inédita, que me foi cedida por seu filho, Reubén).