Numa dessas manhãs frias, caminho pela cidade apressadamente. Subitamente, uma cena me chama atenção. Um gari recolhe o lixo com desenvoltura admirável. No rosto, a expressão de alegria, realizando sua tarefa com plena satisfação. Paro um instante e vou falar com ele. Minha impressão estava certa. Encontro um senhor cheio de energia, contente com o que faz. Peço-lhe para me falar sobre o seu trabalho. Ele me diz gostar bastante. “Nos chamam de lixeiros. Porém, somos os limpadores. Produzem montanhas de resíduos e cabe a nós tirá-los dos espaços públicos. Imagine o caos se fizéssemos greve de uma semana, apenas.” É a pura verdade, penso. Por fim, pergunto qual a pior coisa sobre a sua profissão. Prontamente ele responde: “Somos invisíveis para quase todo mundo. Ninguém nos vê. É como se a gente não existisse.” Impactado com a resposta, segui adiante, refletindo sobre suas palavras. E fui obrigado a admitir: também eu, algumas vezes, sou um desses seres ao qual ele se referiu. Correria, distração ou dificuldade em perceber alguém tão fundamental para manter a organização em tantos locais? Provavelmente um pouco de tudo isso. Mas pesa mesmo, devemos ser sinceros, é o preconceito recaindo sobre este afazer. Triste.
Passei a tarde remoendo isso, com um sentimento de inadequação dentro de mim. Nesses momentos de desconforto começam a nascer grandes mudanças interiores. Primeiro, joga-se luz sobre determinada situação. Depois de um tempo, o pensamento se transforma em evidência concreta. Estendi a reflexão e lembrei de diversas conversas com meus amigos instalados na velhice. Um número considerável deles diz que uma das constatações desoladoras ao chegar a essa idade era o fato de praticamente ignorarem a sua presença. Eles parecem atrapalhar a ordem preestabelecida. Fiquei sem um argumento sequer para rebater suas constatações. Bastou apenas ler a realidade para lhes dar razão. Costumamos expulsar quem deixou de ser produtivo. A experiência passou a ter seu valor diminuído, pois as novidades agora ocupam o centro do funcionamento da vida. Na obra A Parte Mais Tenra, a crítica gastronômica Ruth Reichl faz um relato interessante. Ao se disfarçar para passar incólume em restaurantes, criou personagens variados. Quando se fez passar por idosa, diz que esbarravam nela, fazendo-a sentir-se um estorvo. Exemplo contundente de como podemos ser cruéis sem nos dar conta.
Elegemos quem merece ser olhado. Os demais, a própria sociedade vai se encarregando de empurrar para o lado. Penso no simpático senhor que me mostrou as evidências camufladas pela incapacidade em assumir o quanto somos dependentes de muitas pessoas para a manutenção ordeira do cotidiano. Como no ensinamento budista, tudo no mundo se conecta. Apenas os humanos insistem no princípio da separação.
Às vezes, é preciso recolher o lixo do lado de dentro.