No século 11, uma princesa de Bizâncio introduziu às refeições o uso do garfo, utensílio desconhecido dos impérios ocidentais. Escândalo. A Igreja considera o gesto inaceitável e a responsável por essa novidade no comportamento é desprezada pela poderosa instituição. Até então conhecia-se somente a faca, utilizada de maneira indiscriminada pelos cidadãos. Esse exemplo, citado pelo filósofo Renato Janine Ribeiro, ilustra à perfeição a lenta marcha civilizacional pelo qual as condutas passaram. Da barbárie ao refinamento, da grosseria à afabilidade, fomos nos tornando mais esmerados, respeitando determinados códigos até se inserirem naturalmente no cotidiano. Sempre me interessei em saber como evoluímos neste quesito. Acredito não serem apenas adereços fúteis no processo de relacionamento com o outro. O nome real, para mim, é educação. Entre as muitas obras do gênero que li, fui bastante impactado por Na sala com Danuza, sobretudo por ensinar com adorável senso de humor como devemos agir em determinadas situações. Sem o engessamento que permeou algumas épocas e sociedades passadas, mas simplesmente propondo como nos portar quando em convívio e mesmo na ausência de testemunhas.
Ao longo da história, aprendemos a frear alguns instintos que nos atavam à ancestralidade. A evolução dos costumes trouxe enormes benefícios, estendendo-se para além de uma série de rituais engessando o modo de ser, tornando-nos prisioneiros dos hábitos. Passamos a valorizar a amabilidade, transformando o encontro numa espécie de dança onde impera a mesura. Passei a ver os ritos, que durante a minha juventude me pareciam opressores, como um exercício filosófico. São os humanos criando seus costumes peculiares (e tantas vezes admiráveis) para dar ênfase a momentos relevantes de sua existência. É de grande beleza relacionar-se com alguém que, muito além de seguir determinados protocolos, dirige-se a nós com delicadeza, agradecendo, desculpando-se, sendo gentil. Também faz parte dos bons modos, transcendendo a visão do que significa conduzir-se corretamente em festas, jantares, eventos. Em meio a isso, é pertinente manter certa autonomia, pois não podemos nos tornar escravos das convenções. Porém, está longe de denotar o abandono de uma linguagem polida, de nos apresentarmos vestidos com esmero e, acima de tudo, sermos impecáveis nas ações e termos um cuidado extremo em evitar invadir a privacidade dos demais.
Ao agir dessa forma, estamos depurando a alma. Hoje damos menos importância aos aparatos e entronizamos a liberdade como um degrau galgado num mundo em constante mudança. Porém, parece-me vital refletir que esses contratos duramente conquistados não são apenas regras seguidas cegamente. Podemos fazer nossas escolhas, levando em conta a depuração do gesto, da fala e dos modos. Eles são um valioso capital.