Devemos agradecer pelas redes sociais. Além da utilidade da ferramenta para multiplicar o conhecimento, para aproximar pessoas, elas nos desnudam em seus comentários e traduzem o nosso estágio civilizatório. Não permitem que nos enganemos a respeito de nós mesmos, elas nos livram da armadilha do autoengano. As evidências são muito gritantes em grande parte das manifestações que jorram das redes sociais. É o copo meio cheio, pois oferecem-nos subsídios para um bom diagnóstico a nosso respeito. Se quisermos fazer diagnóstico, é claro, pois em geral preferimos não ver nem refletir sobre o que a realidade mostra sobre nós mesmos.
As mil cruzes colocadas na frente do Santuário de Caravaggio foram arrasadas nas redes sociais. Esgueirei-me por esse território das redes, o que não tenho por hábito, alertado para o fato de que estaria havendo muita crítica à iniciativa – bela iniciativa, aliás – do Santuário de colocar as cruzes para homenagear as vítimas da covid. E fui confrontado com a crueza de nosso autorretrato, ou pelo menos de um fragmento representativo dele. Era uma saraivada. De tantas críticas, uma delas me parece ter poder de síntese. A iniciativa do Santuário foi descrita como “macabra”, ou “depressiva”. Como se macabro não fosse, isso sim, um cenário de 314 mil mortes. As mil cruzes significam, na nossa região, duas mortes para cada cruz. Mas as redes sociais confirmam a pista de que muitos de nós preferem não ver. Revelam um temor diante da realidade, a ponto de se preferir a distância dela – quando não a negação. A realidade é crua, sim, e é nossa amiga, pois nos mostra a dimensão do estrago para que possamos agir se quisermos, nesse caso, minorar perdas – pois o grande dano já está feito.
As mil cruzes do Santuário materializam o tamanho das perdas para que não as banalizemos. Não devemos escondê-las. Macabro é o tamanho da perda, e não fazer o inventário delas – de forma simbólica, aliás. Temos muito medo do simbolismo, da poesia, do significado. Cruz não é materialidade macabra – ou então se desconhece o Cristianismo. A vida é feita também de perdas, elas forjam o espírito, e temos de assimilá-las e elaborá-las para seguir em frente. É a cruz da Sexta-Feira da Paixão. Mas cruz também é sinal de ressurreição, de renascimento e de esperança, como nos ensina a Páscoa. Ou então não entendemos nada. Luto não é macabro. É respeito e homenagem. E luto coletivo e comunitário – as mil cruzes – reforça o amparo a quem ainda chora por suas perdas.
Bela iniciativa do Santuário. O cenário é lindo. Vimos ali, nas cruzes, as vidas que tiveram seu sentido e deixaram suas marcas. Uma homenagem a todas elas.