A instalação de mil cruzes na esplanada do Santuário de Nossa Senhora de Caravaggio, em Farroupilha, durou apenas um dia e não dois, como havia sido previsto pela organização da ação, que quis homenagear as vítimas da covid-19. Após a missa das 18h30min de segunda-feira (29), toda a estrutura montada por voluntários, que começaram a instalação antes das 6h do mesmo dia, foi retirada. Na mesma manhã em que as réplicas do símbolo cristão estavam sendo posicionadas em Farroupilha, uma enxurrada de comentários contrários, muitos cheios de ódio, tomava conta das redes sociais. As pessoas criticavam, entre outras coisas, o uso de cruzes na ação. Segundo essas pessoas, os símbolos representam "algo mórbido".
Apesar de o reitor do Santuário, padre Gilnei Fronza, afirmar que o principal motivo para a retirada antecipada foi a previsão do tempo e a necessidade de liberar a área para organização de celebrações de Páscoa, ele admitiu que houve críticas à ação. Questionado sobre a decisão ter sido tomada por questões de segurança após possíveis ameaças de vandalismo no Santuário, ele afirmou, durante entrevista à rádio Gaúcha Serra nesta terça-feira (30), que a "oração causou ruído".
— Eu diria que todos os fatores combinaram. O Santuário deve ser referência de paz. Quando a oração produz muito ruído, não é uma boa oração. Queremos pensar juntos, Cristo veio para isso. Se a oração produz muito ruído, a gente refaz os passos. Talvez um ou outro tenha se excedido, mas não se pode dizer que houve ameaça. As pessoas ofereceram outras sugestões e isso também pesou na decisão. É um tempo que exige solidariedade — disse. Alguns comentários nas redes sociais diziam que flores poderiam ter sido usadas na ação em Caravaggio, não cruzes.
Ideias avessas ao significado cristão
Entre os comentários postados estão que o Santuário virou uma "cena de terror" e "cenário de guerra". Em vídeos compartilhados, pessoas afirmam que era possível "apenas ver a morte ao visualizar as cruzes". Mas a cruz, como explica Fronza, não representa algo mórbido. A cruz, segundo ele, é exatamente a esperança porque representa ressurreição:
— A cruz é referência de paixão, morte e ressurreição, e estamos na semana de Páscoa. Para chegar à ressurreição foi preciso passar pela cruz e Jesus venceu a morte. A referência foi essa, não foi usarmos de terrorismo. A cruz é sinal de salvação, não é só aniquilação e esvaziamento.
Durante a missa celebrada antes da retirada dos símbolos, na segunda-feira, Fronza afirmou, no sermão, que "muitos querem esconder a cruz, mesmo que ela exista".
Outra crítica foi sobre por que a Igreja não promoveu doação de cestas básicas aos necessiados ao invés de ter gasto dinheiro com a produção das cruzes. Fronza explica que as madeiras usadas já estavam guardadas na Igreja.
— Confeccionamos com materiais que tínhamos e reutilizamos. O custo foi praticamente zero. A ajuda humana e cristã também é necessária. Temos sepultado nossos mortos de covid-19 e isso nos corta o coração — disse, lembrando que a igreja mobiliza campanhas de arrecadação de doações ao Hospital São Carlos, entre outras iniciativas.
"Talvez não seja importante para mim mas é para o outro", diz psicóloga
A psicóloga Rélim Hahn, especialista em luto, explica que os rituais de despedida têm duas funções: uma é o reconhecimento de que a morte aconteceu (e a organização mental disto), que ocorre no velório, e a outra é o apoio social:
— A possibilidade de receber afeto é importante, por isso neste momento estão ocorrendo alguns rituais virtuais.
Já as atividades coletivas, segundo Rélim, servem para acolher e criar empatia.
— O fato de ter mil cruzes representa que não estou sozinho. Sinto que as reações estão agressivas, tudo está intenso. Agora, é preciso pensar: em que lugar eu estou e em que lugar o outro está? Talvez não seja importante para mim, mas é para o outro — cita.
A especialista entende que o comportamento de revolta, na verdade, está ligado ao medo.
— Coletivamente, tudo depende de onde estou e de como estou vivendo com o medo. Essa revolta toda com as cruzes é nada mais d0 que um: não me deixe mais assustado, não estou dando conta e não posso me deparar com isso. Todos nós estamos com uma necessidade genuína não atendida neste momento. Não quero me assustar mais, mas tenho o direito de ir lá e depredar um movimento que é importante para o outro? — questiona.