Há um som de cigarra que fatia as horas do dia. Cigarras invisíveis pousadas nos galhos das árvores. Um compasso de futuro em pleno agora. Gritam e cantam apesar das violências humanas. Sento encolhida na sombra da acácia negra, o dia passa manso como um carreiro de formigas, doce como uma manga palmer (a melhor delas). De certa forma, sempre estamos em posição de espera. Demora sair desse lugar. Ficamos na maior parte do tempo esperando que algo mude, aconteça, nos tire de onde estamos. Ficamos a espera de uma solução como ficam os que antecedem uma batalha e embora em descanso, cheios de expectativas. Tropa recolhida. Mas as cigarras seguem gritando, uma voz que quase enlouquece, que zumbe como um gerador impaciente. O desejo é uma cigarra, esse tremor de animal na noite, só que de dia, a plenos pulmões.
Pelo céu o helicóptero gira e gira, freneticamente. Um pássaro de metal. O que vê lá de cima? Aqui embaixo há os que atravessam as ruas, os que mexem nas lixeiras, os que se escondem pelos cantos, os que matam, os que amam e os que rezam e mentem. E no ar há aquele velho nervosismo dos postes de eletricidade, em que as mariposas destemidas se suicidam em volta dos candeeiros modernos. A morte é uma banalidade. Quanta coisa se perde na vida.
Faz calor nesta cidade, é fim de verão e o trânsito frita nossos afetos. Gente que grita e é mal educada é o que mais tem solta por aí. Vivemos envoltos em severos hábitos ruidosos. A inteligência é um pouco a cada dia, ceifada. Um cão em mim ladra. É raiva, quem não sente? Ao redor muitos ardem feito incêndios ambulantes. Há fogo por todos os lados. No grito do motorista nervoso, nos gestos da passante apressada, nas conversas pautadas pelo julgamento, até as frutas sobre a mesa tem um quê de incendiárias.
Debaixo da acácia o fogo me chega ao rosto. Um banho de sol, literalmente. Pensemos juntos, a vida muda como muda a cor das frutas. Amadurecer é deixar morrer a arrogância de quando ainda somos verdes demais. Assim como as cigarras, que silenciam por um instante. Teriam morrido? É preciso aprender que o silêncio sem barulho algum nem sempre é morte. Silenciar é conter em si o coice da lembrança. Talvez trocar de pele e aceitar que é necessário que nos reconheçamos velhos, ultrapassados, não cabendo mais em si, seja o modo para não morrermos de fato. É o que a cigarra faz. Canta até explodir. E daí, renasce num outro corpo, maior e mais bonito. Já as formigas morrem trabalhando e jamais sentimos falta delas.
A vida não muda sem que a gente mude. Ela segue seu curso de sempre. Fora de nós o dia se mantém como é. Somos nós que iluminamos as horas ou as destroçamos. As cigarras voltam a cantar. É o contínuo da vida com a diferença de que elas, muito mais sábias que nós, já aprenderam que é possível cantar e morrer assim, cantando, enquanto nós achamos que o importante é juntar dinheiro, ficar estressado, adoecer e morrer.