Todo mundo em algum momento sentiu vergonha por algo. Vergonha de não ter estudo suficiente, de sentir-se ignorante. Vergonha do que os outros vão dizer de nós. Podemos até fazer uma lista: vergonha de não ter dinheiro, de sentir-se inferior, de não ter referências, de ler pouco, de sentir-se do interior. Vergonha dos automatismos culturais como da roupa que usamos, do vestido, da camisa, dos sapatos, dos chinelos. As roupas sempre criam uma certa estigmatização à primeira vista. Antes mesmo de dar bom dia, nossa roupa é vista e analisada. Se é adequada ou não. Diz de onde viemos, do quanto ganhamos, que tipo de pessoa somos. Depois nossa forma de falar, o sotaque, o vocabulário, nosso repertório de assuntos deflagram nosso mais íntimo. Podemos ter vergonha do modo como andamos, de como nosso corpo se apresenta, dos braços, da barriga, do nariz. Há uma sintaxe dos movimentos que desvelam a pessoa que somos, a maneira com que pegamos a faca, como levamos o garfo à boca, como sentamos à mesa.
Essas vergonhas iniciáticas que nascem na infância e adolescência, de certo modo, se perpetuam para o resto da vida. Como se fôssemos errados por sermos assim. Como se existisse uma norma que ditasse o que é aceitável e o que é deplorável. Em função disso, polimos nossos modos e quem somos passa ao patamar de quanto eu valho diante do olhar do outro. Eis o inferno. Nos autocondenamos no aprisionamento da existência atrelado ao outro e seus julgamentos. Caímos no redemoinho das comparações, nas autocobranças, afinal, o que dirão de mim se perceberem que me sinto insegura em determinadas situações?
Isso nos ajuda a compreender que há vergonhas desnecessárias, que nos enclausuram. Mas há vergonhas extremamente necessárias. Estas são de outra ordem. As vergonhas do mundo, como dizia o escritor Primo Levi, a vergonha de se ser humano. Afinal, este mundo no qual habitamos é nosso mundo. Estamos completamente presos a ele e pretender uma impossível neutralidade ou isolamento, nos carrega para a insensibilidade. E daí, perdemos o princípio da solidariedade. Um exemplo disso são aquelas frases estapafúrdias que se ouve de que a pessoa não se sente culpada pela injustiças, porque está longe de fazer qualquer uma delas. Percebem a dobra dolorosa da negação?
É preciso dilatar as próprias experiências, abrir mão do congelamento que o estereótipo cria, pôr fim aos discursos fechados. Precisamos parar de tolerar o intolerável. O que há de mais maldoso na tolerância é a aceitação com reservas, verticalizada. O contrário da tolerância é o amor. Percebem a revolução?
A arte reage a essa vergonha. Questiona, critica, faz sonhar. Nos ajuda a envergonhar a imbecilidade. É a partir desta temática da vergonha que na próxima segunda-feira, dia 4 de março, estarei lá com os queridos do Órbita Literária fazendo um bate-papo sobre Annie Ernaux e a vergonha. Como dizia Salman Rushdie, as raízes da violência são a vergonha e a falta dela e ambas são violências diferentes.