Cresci na colônia e não tenho vergonha de contar isso. Meus avós tinham ao lado da casa um pequeno parreiral que em tempos de colheita os dias eram preenchidos por uma alegria com cheiro doce. Além da uva para consumo e para fazer geleia, parte era destinada a produção de vinho, apenas para o consumo era o que nono dizia. E era mesmo. Na parte debaixo da casa, de pedra, era um território que ia do caos ao mágico. Ao lado das pipas em que o vinho ficava fermentando, dormiam as vacas, algumas galinhas punham ovos por ali, os queijos preenchiam as prateleiras na descida da escada e os salames eram pendurados bem no alto, para que os gatos não alcançassem.
As noites eram silenciosas e iluminadas. Quando tinha lua cheia minha nona me levava para o pátio e podíamos sentar na escada da varanda e a luminosidade dava conta do escuro. Comíamos laranja. Ela me contava de coisas que não me lembro, mas guardo na lembrança o carinho do momento. O barulho dos grilos se revezava com o da cigarra nas noites quentes. Era uma gritaria só. Lá de dentro de casa meu nono ligava o rádio. Aquele ruído em busca de sinal. O dial ia de um lado a outro até que algo ficasse nítido para se ouvir. Às vezes era música, noutras alguma notícia. Lembro com saudade dos vagalumes das noites de dezembro, misturados ao perfume do jasmim que tinha na frente da casa. Para mim, até hoje, jasmim tem cheiro de Natal. Sou a neta mais velha de uma família de imigrantes italianos bem grande. Por sorte do destino ainda vivi estes tempos, antes que meus nonos viessem para a cidade. E mesmo quando vieram para cá, ficaram mais no interior e toda vez que precisavam ir ao centro, meu avô apontava o dedo em direção e dizia, lá fica a cidade.
Hoje moro perto do interior, mas um interior que se atualizou, modernizou, para o bem e para o mal. O barulho já chegou aqui, os vagalumes desapareceram e meus avós, queridos, já morreram. Mas ainda há muito parreiral perto de casa, as galinhas circulam pelos pátios dos vizinhos, as vacas pastam perto da cerca que chega próxima à estrada. Ainda é possível ouvir o galo cantando, meio desorientado, diga-se de passagem, mas quem não. Nesta época do ano, andar pelas estradas do interior é permitir-se ser inebriado pelo cheiro bom da uva madura e das cantinas fazendo vinho. O sol adocica a memória.
O tempo passa, a paisagem se modifica. Algumas coisas permanecem, muito mais dentro de nós, do que fora. É nas lembranças que o passado se faz presente. Até porque o tempo da lembrança é o presente, como assinalou Deleuze. Talvez o passado não tenha sido exatamente assim como se conta. Toda narrativa é uma construção. Mas rememorar é torna-se sensível outra vez, criança de novo, fruto de um tempo em que a subjetividade nascia como nascem as borboletas.
Lembrar é um dever ético. É olhando para o passado que entendemos o que dele ficou para o presente. Afinal, nem todo passado passa. Em tempos de Festa da Uva, relembrar o legado de quem fez daqui o aqui de hoje, é entender que somos, invariavelmente, novos sujeitos de novos passados.