O ano novo nos chega assim. Trazido pela passagem dos dias e por inúmeras surpresas da vida. Muitas delas boas, outras nem tanto. Chega como flores colhidas de um jardim distante, coberto de terra, musgos, raízes tecidas pelas lembranças feito uma colcha de renda rara. Chega feito semente, grão de folha em desalinho, solto ao vento buscando lugar para nascer. O ano novo nos chega feito verbo intransitivo anunciando novos cantos e melodias, alguns em coro, outros em solidão. Esses primeiros dias guardam o silêncio dos cômodos vazios. A casa despida de pessoas. As ruas nuas. O novo ano que começa traz de volta o desafio da travessia. Um ano bissexto. 366 dias para fazer dele um corpo de poesia.
O novo ano nos incita a transpor o limiar. É um convite a aproveitar a vida enquanto ela ainda canta em nós. Sorrir, orar, plantar um jardim, fazer um café, sair com amigos, visitar pessoas queridas, deixar os queridos chegarem perto. Os chatos, os maldosos, as gentes ruins se enterram por si mesmas, não precisamos jogar nenhuma pá de terra sobre eles.
Olho pela janela enquanto escrevo esta crônica de bom princípio e a árvore esculpe meus olhos. Respiro como ela e ouço um rumorejo de folhas. Na trama do vegetal lenhoso uma história de amor e conflitos. Nossas cicatrizes, (quem não as têm?) são o registro do encontro brutal com a vida.
O ano novo nos chega assim, feito palavras recém saídas do forno, quentes e acolhedoras. Mas nem todos percebem. Nem todos estão prontos para saciar sua fome de ano novo. Começar, recomeçar, insistir em refazer, esperar, esperançar, não desistir, tentar de novo, acreditar que agora vai, só mais essa vez, acreditar é coisa de quem nasceu bambu. A gente enverga, mas não quebra.
O ano novo chega soletrando um canto já conhecido. Chega arrancando suspiros e fazendo sonhos. É mar e a força das águas faz em nós outras margens. Podemos não conhecer todas as línguas, desconhecer as estrangeiridades do mundo, do outro, até das pessoas mais próximas, mas o ano novo chega feito livro inexistente a espera de nossa leitura. É preciso paciência para compreender esse dialeto. Leva tempo para a conversa acontecer.
O ano novo é refazer o trajeto de nossa nascente. Voltar para o começo. Esses primeiros dias são cantochão orvalhado de saudade e despedida, com copos de leite na sombra e jasmins lembrando o cheiro do Natal que já passou.
Ano novo é árvore-broto, precisa de estações para crescer e dar flor. É uma tarde aberta com horas vindas. É a cabeleira das avencas presas ao muro abraçado pelo musgo. São as romãs explodindo em flores com um azul preguiçoso ao fundo.
O ano novo é a quina do mundo. A dobra da esquina. Chega sempre no verão com seu tapete de flor-ida. Nos ensinando que nada dura para sempre.
Toda compreensão é uma forma de poesia. Esse clarão inaugural que só sentimos quando nos dispomos a olhar mais para dentro do que para fora. O ano novo é uma espécie de ensejo ao mergulho nesse rio-mar que somos. São as nossas águas de autocompaixão. Nadar em si é a única forma de não morrermos afogados nas dores que sentimos.