Enquanto escrevo esta crônica observo os beija-flores se banharem na fonte que temos em casa. Minúsculos, voam, pousam e se refrescam na água. Não devem carregar nenhum arrependimento. Talvez nunca tenham se perguntado sobre algo, porque o importante é viver. Sábado próximo, dia 23, farei uma sessão de autógrafos do livro Quando menos se espera já é março. É um livro que reúne algumas poucas crônicas publicadas aqui no jornal durante estes anos todos de colunista. É um livro de despedida.
Alguns dias após a morte de meu pai, naqueles dias em que se acorda e é preciso voltar a olhar o mundo e aceitar o insuportável da perda, minha mãe me chama. Está mexendo nas coisas dele, olhando os casacos, as roupas, os sapatos, sentindo o cheiro dele (como é possível depois de tanto tempo?), abraçando as peças, decidindo o que dar e o que segurar um pouco mais. Entre as coisas dele, uma caixa. Quando cheguei a caixa estava sobre a cama, misturada com tudo que havia no guarda-roupa, agora exposto, já sem mistério ou pudor. Dá uma olhada, ela me disse. Afastei os cachecóis e de todos fiquei com um para mim, já enrolando no pescoço, um que sempre o via usando e achava que ficava bonito demais. Meu pai era um homem lindo e perfumado. Antes de abrir a caixa afastei o chapéu. Meu pai era um homem que usava chapéu. São tão raros os homens que usam chapéu. Há neles uma beleza rara de um tempo que ficou perdido. Coloquei o chapéu dele em minha cabeça, como quando criança ao perceber que ele iria sair, então usava o chapéu como forma de dizer, fica mais um pouco. Agora vestida de cachecol e chapéu, abro a caixa.
Às vezes penso que morremos porque ficamos maduros. Chega uma hora em que descobrimos que a vida é o encontro com a surpresa inevitável da ausência. Depois da dor da perda surge uma saudade, também dolorida, mas de um modo diferente. Uma saudade que faz outros futuros existem. Quantas vezes me perguntei como fazemos para sobreviver a morte de alguém querido? Não é nada fácil. Por um longo tempo ficamos parados dentro do silêncio.
É reconfortante estar entre os objetos familiares dele, tocar em coisas que em algum momento ele tocou. Objetos queridos que ganham outra dimensão diante da perda. Na caixa encontro páginas e páginas de minhas crônicas. Toda terça depois de me ler, ele retirava a página e a guardava numa caixa. Crônicas e crônicas, textos e textos, palavras e palavras, todas ali, guardadas junto aos casacos de inverno. Uma boa metáfora para o momento.
Reli algumas das crônicas, separei as que mais gosto e eis que nasceu o livro. Por isso é um livro de despedida. Faz parte do meu trabalho de luto, tão compartilhado com todos aqui. Por isso, esta é também uma crônica-convite para que todos possam estar comigo neste momento, brindando à vida e à memória das pessoas queridas que tivemos a sorte de estar juntos por um tempo. Sim, é só chegar e estar junto. É quase primavera, sábado será 23, e entre abraços e autógrafos voltamos à vida, assim como as flores e os pássaros.