Pare, observe, escute. Repare. Todos os dias pedaços de nós chegam ao fim. Pedaços que, de certa forma, já não são mais nossos. Não nos pertencem mais. Mudamos. Mudaram. Reparo e, às vezes, os vejo cruzarem a rua e passarem para o outro lado da calçada. Pedaços de mim que partem. Olhe para eles. Deixe eles te olharem. O tempo junta e separa pessoas. Junta e separa amores. Junta e separa. O tempo é uma espécie de morte. Cada morte chega com um gosto diferente. Há as que causam alegria, alívio. Há as que doem demais. Há as que abrem espaço para uma outra vida. Há as que aprisionam por um tempo. Algumas tem aquele gosto que resta na boca depois do sono. Outras tem gosto das quatro da tarde com mistura de chá e pão.
Já morremos tantas vezes nesta vida. Não sei porque temos tanto medo de falar sobre isso. Viver e morrer é tão assertivo quanto trombarmos, vez por outra, em nossas pequenas mortes cotidianas. O fim de um livro bom, o encontro desmarcado, o telefone não atendido, a louça suja sobre a pia, uma flor de pétalas caídas, um velho cartão postal de um amor já partido, as cartas da juventude, uma foto esquecida e reencontrada, cheia de marcas de um outro tempo, nossas pequenas mortes. A cada um desses encontros ensaiamos uma pequena coreografia de um adeus. É um assombro, a constatação da finitude. Depois, passado o soluço íntimo da consciência, sabemos que a vida continua. Esse reviver é como acordar, abrir a janela e ver o dia lá fora.
Viver é um grito. Aquilo que rasga ao meio a apatia dos dias que se sucedem. Repare, tem dias em que há um mundo no fundo da xícara. Um mundo que se contrai para dar nascimento a alegria. Uma delicada porcelana que recobre os fatos e nos faz sonhar, outra vez. Um mundo que se ergue entre o cheiro do café e a porta de entrada. A coisa toda pelos detalhes. É por eles que circulamos, invariavelmente.
Na dor da morte ficamos com eles. O detalhe do sorriso, do olho que se fecha ao falar, do timbre do oi, do perfume da camisa, do trejeito de andar, das mãos que gesticulam. A imagem nunca vem inteira. É a cor do cabelo, o contorno dos lábios, os botões do casaco. E com o passar do tempo, vai se apagando.
Na dor da vida, porque viver dói, também. Descobrimos que não estamos preparados para amar. Amamos sem preparo. Amamos amores que não queríamos ter amado. Amamos quem não nos pode amar. Amamos com raiva entre as tripas. Amamos feito crianças, imaturas. Amamos atrás da porta, sem nunca nos apresentar de fato. Amamos correndo, sem tempo de sentar um pouco. Amamos de modo envergonhado, e por isso sem entrega. Amamos às três da tarde e desamamos às 18h. Amamos pelo improvável, pelo impossível. Amamos pelo desejo de quentura. Amamos de um jeito nublado.
Repare, um dia, a coisa toda muda, queiramos ou não. Se encerra. Cruza a rua, passa para o outro lado da calçada. Ficamos machucados, nos recolhemos. O peito fica vazio. Um pedaço da trama começa a desfiar. A vida segue mesmo assim, sentimos, sabemos, embora parte de nós para nas palavras de uma crônica esquisita lida nas primeiras horas do dia.