Há dias em que somos atingidos por uma tempestade de areia. Somos esfolados pela vida. A pele, os olhos, o pensamento são arranhados e a nossa carne se parte ao meio. Ficamos tristes. A areia nos chicoteia golpes precisos através dos ventos que nos sacodem. Algo dentro de nós se desorganiza. As dores do presente se somam as do passado. Perdemos a noção se quem sente tem 60 ou seis anos. Então aos poucos vai passando, pois sempre há um dia seguinte. Descobrimos que sobrevivemos. Descobrimos que nossa alma ainda guarda muitas pétalas e que a vida é feita de camadas. O rio dá água sem cessar. Silencioso ou ruidoso, segue. Enquanto a vida corre, forjamos nosso rio interno. Às vezes caudaloso, às vezes minguado. Mas sempre rio. Sempre água. Sempre vivo. Cada um de nós carrega em si um desejo de mar. E seguimos como quem busca o oceano ou o encontro consigo mesmo. Eu já nasci descendo a serra. No mar, o céu perde as nuvens para as aves.
Depois descobrimos que ainda podemos dançar. Nossas pernas não foram atingidas. E dançamos. Alguns dirão que enlouquecemos, outros, não entenderão. É a dança da vida com nossos deuses e demônios de mãos dadas. Porque há em nós vida e dor, desejo e medo, sorriso e chuva, leito e margem, silêncio e profundidade. Há em nós pedra e rio, loucura e sanidade, feridas e flores. Há ainda o ontem e o hoje, a criança e o agora, a saudade e o tempo, as estrelas e o abismo. Mas diferente das partículas desordenadas que nos atingiram durante a tempestade de areia, balançamos e dançamos, agora, em busca de sol. Pois que o sol clareia e aquece a terra. Beija o rosto nos fazendo sentir o calor das flores vermelhas. É pelo sol que parimos uma outra realidade.
Sem o inefável não viveríamos e nem aprenderíamos a viver. Jamais poderemos alterar o indizível da vida, nem ficar imóveis. Somos chamados constantemente a ser e ser é viver atravessado pela realidade de si e dos outros. Invariavelmente as vozes que ouvimos dentro de nós mesmos e que tanto nos angustiam são de nossas crianças com medo do abandono e do desamparo. Mas nossas necessidades não se resumem mais a ter apenas uma casa e comida na mesa. Temos a necessidade de aprender a suportar o rasgo da solidão, a ouvir a música sem medo dos acordes e saber que nosso escuro nos espreita por entre as xícaras da pia.
Pouco sabemos de nós mesmos. Pouco sabemos do outro. Isso deveria ser o suficiente para nos mantermos humildes diante do mistério. Eis a falta e a dor dela. Somos caramujos fechados em si mesmos em dia de sol. A manhã é a primeira pausa da noite. Sejamos sol.