Quase todas as manhãs acordo ouvindo pássaros e desde que você se foi, tenho observado o céu mais atentamente. Alguns já dobraram seu canto e estão prontos para assumir uma família. Vejo-os em voos retilíneos, rasantes, brincalhões, perdidos, desconhecidos e até tristes. Ontem um deles pousou na cerejeira em frente à casa e me perguntou de você. Não soube o que dizer. Não sei onde você está, o que anda fazendo, se ainda canta, nem se planta morangos orgânicos. Com a sua partida a casa ficou oca, a cama enorme e na mesa sobram talheres.
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Evito os amigos, pouco tenho saído e de vez em quando coloco suas roupas para tomar um banho de sol. O tempo mudou e você desceu na estação 2016. Sabe, acho que algumas pessoas depois que morrem devem virar pássaro. Viram beija-flores, pardais, tico-ticos, canários, pintassilgos e até corruíras. Eu, quando morrer, quero ser curió. A dor da morte é a do pássaro que não dobra o canto. A primavera está chegando e imagino que a sua partida seja por conta disso. Você migrou junto de todos aqueles que migram abolindo limites. Foi para uma terra onde nem todo viajante pode se aventurar.
A previsão do tempo anunciou a chegada de um ciclone, acho que você não ficou sabendo. Me preocupei. É preciso força para enfrentar um vendaval. Se você tivesse me dito da sua vontade de mudar-se e deixado o novo endereço, poderia lhe enviar postais, flores e gravações matinais dos pius que me visitam. Em não tendo remetente, as asas não batem e a saudade adoece. O orvalho chora sobre os panos de renda que cobrem a mesa. Sou dilúvio. Somos todos quando a vida é suspensa por decreto. Há tantas coisas que eu nunca te falei e que não cabem aqui dentro dessas margens. A velha esperada que chega impressentida.
Me diga, daí de aonde você está, consegue ver os meteoros? Eles são coloridos? Saturno tem muitos anéis mesmo? Viu a lua mais de perto? É quase primavera, e o pássaro faz seu ninho na cerejeira do pátio, põe ovos e canta. Chove também. Os sentimentos são águas de um instante. Irrigação do solo. Vejo a chuva e sei que certas coisas são indestrutíveis e nos acompanham até a morte, como se tivéssemos nascido com elas. Uma delas é o amor entre duas pessoas. O corpo não nos (de)limita. Vou plantar seus morangos. Estou dobrando meu canto e um dia, eu também migrarei.