Aprendi a andar de bicicleta sem rodas laterais de apoio, numa tarde suarenta de verão, aos seis anos de idade. Um dia, depois do almoço, vi uma bicicleta, aro 26, descansando ao lado de um pé de azaléia. Em dois tempos estava sobre ela e aos gritos de incentivo de meus melhores amigos (uma de quatro e outro de dois e meio) me lancei ao mundo. Desci o morro de cascalhos que levava à casa da madrinha, sentindo o vento bater na cara e vendo as vacas pastando o verde ao longe. Na metade da descida descobri que meus pés não alcançavam o freio, que ficava no pedal. Então, corajosamente, decidi que saltaria da bicicleta, assim como acontece no circo.
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Nasci para ser equilibrista. Fiquei de pé sobre a barra e sem medo algum, saltei para o mundo. Quando somos crianças os machucados e as cicatrizes são honrarias. A gente vive e se diverte num emaranhado de esparadrapos, cotovelos esfolados, joelhos ralados. Os machucados são títulos de nobreza, a coragem em fazer, a marca da aventura, ainda que mal sucedida. Depois a gente cresce e fica com essa mania besta de achar que não dá mais para errar. Não trocamos de emprego por causa da estabilidade, não terminamos o casamento por comodismo, não andamos mais de bicicleta por que podemos cair e se machucar feio, além do que, hoje têm mais carro na rua, mais ladrão, mais buraco. Na vida adulta, aceitar novos desafios parece algo tão distante. Coisa de quem não tem juízo. Assim, nos acomodamos a viver uma vida com “rodinhas de apoio”, seguindo sempre em linha reta. É preciso arriscar-se a caçar flores, a inverter o movimento da terra, a golpear estrelas.
Somos bichos que atravessam o mundo. Adultos também sangram, precisam de cuidados e a voltar a perceber que machucar-se faz parte do jogo. Depois do tombo que levei aos seis anos, que resultou em braço e dentes quebrados, um galo na cabeça e atestado de afastamento por um determinado tempo da escola (essa parte foi a melhor), meu pai, com sua coragem silenciosa, afrouxou os parafusos da minha bicicleta e soltou as rodas laterais de apoio. Às vezes sinto que meu lado adulta tem medo de se equilibrar, outra vez , na bicicleta que a vida deixa descansando ao lado do pé de azaléia, na descida do morro.
Então fecho os olhos e lembro daquela sensação selvagem, de desafiar a ordem. Recomeçar é o principal talento de existir. Somos nós que colocamos movimento na vida. Então, respiro e embalo com força. A diferença agora, é que alcanço os pedais e entre eu e o impossível, apesar do medo, ainda me deixo levar pela criança que fui.