Quase sem registrar danos em meio à chuva, a cidade de Passo Fundo, no norte gaúcho, tornou-se o destino de muitas famílias que buscam reconstruir suas vidas após o terror das enchentes que causaram mortes e estragos no Rio Grande do Sul.
Em todo o estado, cerca de 100 mil residências foram afetadas e quase 10 mil destruídas, conforme a Confederação Nacional dos Municípios (CNM). No Vale do Taquari, pela terceira vez em oito meses, a água tomou conta de cidades, e desaguou em Porto Alegre e Região Metropolitana deixando vítimas e perdas pelo caminho.
Em Canoas há 10 meses, a autônoma Mônica Gobbi viu a casa ser inundada de forma repentina. A lembrança dos momentos de pânico emocionam: ela e a família — sua filha Vitória, 20 anos, e a mãe Luz, 76 — foram resgatadas por voluntários e conseguiram salvar somente os cães, gatos e um pássaro. Todos os bens, desde roupas a materiais de trabalho, ficaram debaixo d'água.
— Eu media a água e via subir cada vez mais rápido. Eu não falava para elas, mas olhava para a água e me via com elas e os animais afogados. Então eu não quero nunca mais passar por isso — disse.
Como já havia morado em Passo Fundo, Mônica e a família contaram com a ajuda de conhecidos e amigos que auxiliaram com moradia provisória e donativos. Agora, ela está em um apartamento no município e já planeja empreender. Em Canoas, ela e a filha faziam tele-entrega de massas japonesas. O objetivo daqui para frente é começar a produção e estabelecer a família novamente em Passo Fundo:
— A minha ideia é tentar botar em prática a tele-entrega aqui em Passo Fundo, até porque é uma coisa que não tem e é uma comida que a gente sabe que muita gente aqui gosta. Tem que começar a ver se conseguimos juntar um dinheiro pra começar, porque eu perdi tudo: casa, móveis, roupa, carro, tudo.
"Ficamos sem poder tirar nada de dentro de casa", relata cozinheira
A necessidade de recomeçar é compartilhada pela cozinheira Eliane Bortolin de Souza. Natural de Passo Fundo, ela vivia no município de Roca Sales, no Vale do Taquari, desde o final da década de 1990. Em setembro de 2023, a casa em que morava foi inundada e ela perdeu praticamente tudo.
Eliane, então, foi morar no apartamento de um dos filhos, no centro do pequeno município dilacerado após quatro enchentes consecutivas na cidade. No início desse ano ela conseguiu alugar uma nova casa, mas, poucos meses depois, a cheia do Rio Taquari invadiu a cidade novamente e Eliane, mais uma vez, perdeu tudo o que tinha.
— Eu trabalhava em dois empregos para conseguir dar a volta e simplesmente a gente ficou impotente, de não poder tirar nada de dentro de casa — lembra.
A saída, então, foi voltar a Passo Fundo, onde Eliane está junto com um filho de 16 anos na casa de sua mãe. Foi só chegar na cidade que ela foi em busca de emprego para recomeçar a vida. A ideia, segundo ela, é juntar dinheiro para comprar um imóvel e, aos poucos, reconquistar tudo o que perdeu. Hoje, ela conseguiu trabalho no Hospital São Vicente de Paulo (HSVP).
Secretaria de Assistência Social atende famílias
Ao longo do último mês, a Secretaria de Cidadania e Assistência Social (Semcas) atendeu a dezenas de famílias de diversas cidades gaúchas que buscaram em Passo Fundo um local para recomeçar. Segundo o secretário da pasta, Rafael Bortolussi, muitas chegaram apenas com a roupa do corpo enquanto outras precisavam de alimentos e moradia.
— Muitas famílias já afirmaram que, quando suas cidades voltarem ao normal, elas retornarão para as suas residências e vidas normais. Já algumas, a minoria, disseram que vão permanecer em Passo Fundo e buscar meios para permanecer — relatou.
Apesar da ajuda, quem chega em Passo Fundo após viver a maior tragédia da história do Rio Grande do Sul não consegue tirar do pensamento o que passou. Embora esteja de volta à cidade em que nasceu, Eliane não esquece da vida que deixou para trás no Vale do Taquari. Dois filhos e muitos amigos ficaram em Roca Sales.
— Alivia saber que estou segura, mas ao mesmo tempo não alivia muito, porque eu deixei um filho em Roca Sales e a minha filha em Estrela, né? E amigos também... — desabafa Eliane.
— A gente se lembra muito ainda das coisas que perdeu. Mas estou feliz porque eu abriria 20 vezes mão disso e não do que eu consegui salvar (família e animais), que era o mais importante — completa Mônica.