Gilda Galeazzi, 69 anos, quebrou paradigmas e fez a frente em vários espaços que ocupou. Aos 14 anos, conheceu o primeiro CTG e, desde lá, há 55 anos, colocou o tradicionalismo como sua filosofia de vida.
Nascida na comunidade de São Luiz da Mortandade, no município de Marau, em 3 de março de 1954, foi a penúltima de sete irmãos. Conta que uma das irmãs foi adotada, deixada na porta da casa da família em 1969.
Vinda de uma família de pequenos agricultores, aprendeu cedo a lida na roça e a cozinhar para os irmãos mais velhos, que trabalhavam ajudando o pai.
A dificuldade que as crianças tinham de ir para a escola morando no interior, fez com que sua mãe decidisse ir morar em Passo Fundo com os filhos, enquanto o pai permaneceu na roça. Gilda tinha oito anos de idade, e, como a mãe precisava trabalhar para manter a família, os filhos acabaram ficando em casas de freiras e lares.
— Víamos a família nas férias e assim crescemos, não havia outra opção. Passei por colégios de freiras em Carazinho e Não-Me-Toque e por último no Lar da Menina em Passo Fundo.
Aos 14 anos, Gilda saiu do lar. No mesmo ano, uma de suas irmãs foi convidada a ir para o CTG Osório Porto, que até hoje está em funcionamento. Convidou Gilda, que desde aquele momento soube que aquele era o lugar que gostava de estar.
Em plena década de 1960, Gilda e a irmã mais nova decidiram entrar na invernada mirim do CTG Osório Porto, que até então funcionava em um salão na rua General Osório, mesma rua em que foi inaugurada a sede, em 1968.
O anúncio do concurso de 1ª prenda lhe encheu os olhos e, diferente de como acontece hoje, vencia a prenda que vendesse mais rifas. Gilda saiu pela cidade, andou quilômetros para conseguir o posto que almejava. Vendeu todos os bilhetes, mas por ironia do destino, outra concorrente era filha de coronel e ele decidiu comprar todos os ingressos e alguns extras. Gilda não venceu e pela injustiça cometida, decidiu deixar a entidade.
Neste período estudava na Escola EENAV, conhecido colégio estadual do município. Numa tarde, na Praça Tamandaré, no centro de Passo Fundo conheceu Carlos, que seria seu esposo.
— Conheci o Carlos em junho de 1969, eu tinha 15 e ele 26. Noivamos em março de 1970 e em setembro do mesmo ano casamos. Foi tudo muito rápido, mal nos conhecíamos, mas contrariamos aquela crença de que precisa conhecer muito uma pessoa antes de casar. Estamos juntos até hoje, são 53 anos de união, com duas filhas e três netos.
O casamento trouxe mais uma vez a oportunidade de se aproximar ao tradicionalismo. Carlos fazia parte da patronagem do CTG Fagundes dos Reis.
— Naquela época as mulheres serviam para lavar a louça, limpar e receber as pessoas nos bailes de CTG. Não havia participação na patronagem, na parte administrativa. Éramos apenas coadjuvantes.
Ela conta que o casal participava muito da vida tradicionalista, mas houve momento em que se afastaram, por questões familiares, perdas de parentes próximos.
Alguns anos mais tarde voltaram a frequentar a vida dos CTGs, quando em meados de 1978, no período que acontecia o Rodeio Crioulo Internacional de Vacaria, um dos mais famosos do Estado, Gilda teve que ficar em Passo Fundo. A primeira filha do casal nasceria. Dois anos e dois dias depois, na mesma época, nasce a segunda menina.
Cuidando das filhas e dedicado ao trabalho formal, Carlos retorna ao CTG Fagundes dos Reis em 1982 e em 1983 se torna coordenador da 7ª Região Tradicionalista. Depois de cumprir seu mandato novamente o casal, agora com duas filhas, se afasta da vida campeira.
Mas a saudade e o costume dos eventos, dos amigos, da tradição, fez com que em 1990 retornassem ao convívio com a tradição.
— A partir dali não parei mais. Acompanhava meu marido, que voltou a ser coordenador da 7ª RT e neste período estava começando a informatização na nossa vida. Resolvi informatizar a nossa região, me tornei secretária e efetivei todo o cadastro de laçadores, me envolvi com a parte burocrática da coordenadoria. Ali percebi que gostava da parte administrativa.
O primeiro mandato à frente da 7ª Região Tradicionalista
Envolvida de cabeça e coração no movimento, Gilda, que já estava atuando vice-coordenadoras de eventos, acabou tendo que assumir a coordenação geral por acaso. O então coordenador foi destituído pelo MTG. Paulo Dutra, na época vice-coordenador, era também presidente da seção gaúcha do Conselho Internacional de Festivais de Folclore e Artes Tradicionais (Cioff) e precisou viajar para o exterior.
— A Semana Farroupilha estava prestes a iniciar. Assumi a responsabilidade e realizei a Semana Farroupilha de Passo Fundo em 1995. Na época ela era feita no Parque de Rodeios com os CTGs da cidade.
Gilda desempenhou bem o papel e, em novembro do mesmo ano, durante um encontro de patrões em São Lourenço do Sul, foi eleita coordenadora da 7ª Região Tradicionalista. Em janeiro de 1996, aos 42 anos, assumiu a função, que envolvia cerca de 70 CTGs em 42 municípios do Rio Grande do Sul.
Estar a frente do cargo demandou coragem e muita ousadia.
— Não tenho lembrança em 1996 de ter tido colega como coordenadora de RT, quebrei um paradigma com certeza. Os CTGs começaram a ter patroas e muitas mulheres começaram a ser envolver nas questões administrativas, colaborando com seu conhecimento nos espaços que estavam.
Mas ser pioneira também teve suas dificuldades. Gilda conta que foi difícil ser aceita como coordenadora em um espaço tão conservador.
— Na parte campeira, íamos para os parques de rodeio e os homens não olhavam para o meu rosto. Eu falava e eles abaixavam a cabeça. As mulheres não gostaram de ver uma mulher envolvida com os homens e ficavam de murmurinho nas cozinhas. Ninguém aceitava uma mulher, é um movimento conservador. As famílias eram assim, era automático os homens assumirem o papel de protagonistas. Não foi uma tarefa fácil.
O desempenho e a dedicação resultaram em nove anos à frente da 7ª Região Tradicionalista. Participou do 1º Rodeio de Integração Nacional de Passo Fundo, realizado na Morada Além do Horizonte, e de edições do Rodeio Internacional de Passo Fundo.
Em 2003, ainda na 7ª RT, concorreu a vereadora, fazendo pouco mais de 500 votos. Não se elegeu.
Envolvida com a vida política por um período, em 2004 assumiu a coordenação de turismo da Prefeitura de Passo Fundo, onde permaneceu por pouco mais de três anos.
Jogadores vestindo bombacha
Em 2010 Gilda foi fazer uma visita aos CTGs e no encerramento da Semana Farroupilha os patrões novamente pediram que ela voltasse ao trabalho de coordenadora. Decidiu concorrer em dezembro de 2010, foi eleita e novamente assumiu a 7ª RT em 2011, cargo que ocupou por mais nove anos, sendo reeleita oito vezes.
Ela conta que até então o gaúcho era ridicularizado pela vestimenta, a bombacha e o vestido de prenda não eram considerados roupas normais.
O pioneirismo novamente entrou em cena e Gilda propôs uma parceria entre o movimento e o Esporte Clube Passo Fundo e alguns clubes de bairros.
— Propusemos que os jogadores usassem bombacha quando viajassem para jogar fora de casa, mostrando a nossa indumentária, a força da vestimenta do gaúcho. O uniforme deles viajarem seria a bombacha, e assim foi. No intervalo dos jogos levávamos os grupos de dança para se apresentar e assim levamos o CTG para dentro do estádio. Foi uma revolução. A partir daí começamos a participar da sociedade civil organizada, da CDL, Acisa, entidades representativas e levamos a compreensão de que os jovens que participavam do movimento tradicionalista eram diferentes, não se envolviam com drogas, não estavam nas páginas policiais e não havia evasão escolar desse público. Tudo porque estavam nos CTGs com as famílias e esse sempre foi o diferencial no movimento tradicionalista. A participação da família muda tudo. Não existe nenhum outro local que o pai leva o filho e o neto junto em uma baile, isso só acontece no movimento.
A primeira mulher presidente do MTG
Depois de 18 anos de uma representação atuante no movimento tradicionalista, Gilda decide concorrer em 2019 para a presidência do Movimento Tradicionalista Gaúcho, o MTG.
Pela primeira vez duas mulheres foram candidatas em uma disputa que levou 1060 pessoas presentes na votação, outro fato histórico no período. A eleição aconteceu no Congresso Tradicionalista em Lageado e houve empate. No regimento diz que o candidato mais velho vence e, portanto, Gilda estaria eleita. Porém o MTG compreendeu que deveria ser levada em conta a idade do membro mais velho da chapa como um todo e a outra candidata venceu por ter o integrante mais velho em seu grupo.
— Eu já estava conformada quando recebi dezenas de ligações e apoio de políticos, familiares e amigos que não aceitaram a decisão. Entramos na justiça e a posse foi suspensa. Foram 20 dias de espera até que o juiz de Lajeado decidiu que a nossa chapa era a vencedora.
Assim Gilda assumiu como a primeira mulher presidente do MTG no Estado. Ela cumpriu 40 dias de sua gestão com planejamento das ações. Entretanto, 40 dias depois, a pandemia da Covid-19 mudaria toda a história.
— Não conseguimos fazer praticamente nada. A parte administrativa conseguimos organizar, mas os funcionários trabalhando de forma remota e eu sendo proibida de viajar por problemas de saúde, atrapalhou todo o processo. Cumpri meu mandato por um ano e meio até poder fazer a eleição, que até então era presencial. Em junho de 2021 houve eleição e partir dali me afastei de tudo, até para poder recuperar a saúde, por ordem médica, depois de problemas sérios desde outubro de 2019. Fiquei doente de uma forma inesperada, nunca tive nada, nenhum problema de saúde. Me afastei e hoje fico perto da minha família, filhas e netos. Eu dediquei uma vida ao movimento, era 24 horas por dias, de forma voluntária, inclusive finais de semana. Nossa região era muito participativa. Entendo que precisamos nos dedicar ao bem comum e foi isso que eu fiz à frente da entidade. Foram muitas conquistas.
GZH Passo Fundo
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