Por Manoel Soares, comunicador
Estava entrando em um avião esses dias e pensando: para que serve essa história de Consciência Negra? Poxa, é só a cor da pele, não deveria ser tão importante. Antes que encontrasse o número do meu assento, uma senhora disse para a sua colega ao lado: "Esse moreno deu certo. Adoro o trabalho dele."
Como assim "esse moreno deu certo"? Existe um abismo nessa frase que me jogou para o tempo que eu subia a pé a Rua Correa Lima até chegar na Redação da RBS. Subia a pé porque vendia as fichinhas de ônibus para complementar a renda. Chegava suado e ia direto para o banheiro, escondido, para lavar meu sovaco na pia e não ficar com asa na Redação. Ali, encontrava outros "morenos" fazendo o mesmo.
Exercitem a consciência crítica antes de exigir qualidade sem dar oportunidades, porque só precisamos disso: oportunidades
Na época, era motivo de piada. Não porque ganhava menos do que meus colegas jornalistas, mas porque a fragilidade financeira de minha família era maior do que minha vontade de ajudar todos. Em casa de "moreno", os salários são coletivos, é Ubuntu da grana. Não fazemos isso porque somos filhos de ouro, mas porque o dinheiro não pode ser meu, quando a fome é nossa. Minha família era tudo que eu tinha e eles a mim. Ser o "moreno que deu certo" custou a coluna da minha mãe, destruída limpando casas gigantescas por trocados que garantiam o pão e o gás. Hoje, por mais que eu esteja na Rede Globo, por mais que ganhe bem, não posso comprar um ciático novo para minha mãe, não posso impedir que a bala entre na cabeça de meu pai, não posso devolver os sonhos que meus irmãos abandonaram nos becos escuros e sem saída, esses são bastidores de histórias negras.
Consciência Negra é sobre isso: entender que o passado da minha família ou de um navio negreiro que chegou em 1600 impacta minha vida. Nossa luta é fazer desses impactos alavanca para sonhos futuros. Consciência Negra é poder dizer a vocês que meu povo tem o dom de transformar carência em potência e assim mudar a nossa e a sua história. Mas para que outros "morenos deem certo", os brancos precisam da Consciência Negra, ter consciência de que nossos pontos de partida são diferentes, mas o destino é o mesmo. Exercitem a consciência crítica antes de exigir qualidade sem dar oportunidades, porque só precisamos disso: oportunidades, e aí outros morenos vão dar certo. E, só para fechar, se a senhora do voo estiver lendo, não sou moreno, sou Negro.