A desconfiança de que a propalada conversão do presidente Jair Bolsonaro ao liberalismo era apenas uma conveniência eleitoral para se contrapor ao petismo está se tornando crescentemente uma certeza cristalina. Não se trata exatamente de uma surpresa: em 28 anos de mandato como deputado, Bolsonaro nunca mostrou simpatia por privatizações e se notabilizou por posturas corporativistas. Os episódios de terça-feira, com a saída de Salim Mattar e Paulo Uebel das secretarias especiais de Desestatização e Desburocratização, foram apenas mais um indício a confirmar a falsa impressão vendida pela campanha de Bolsonaro: aos poucos, a realidade vai esvaindo a quimera que conquistou grande parte do empresariado e do mercado financeiro. Agora decepcionam-se os que enxergaram em Bolsonaro a esperança de um sopro reformador na economia que iria varrer os maus costumes da gestão pública e modernizar as práticas anacrônicas que mantêm o Brasil atado a um modelo estatista e engessado que emperra o empreendedorismo, drena recursos escassos e é incapaz de promover o desenvolvimento e a justiça social.
A "debandada" de Mattar e Uebel não ocorre por acaso e é resultado de uma soma de frustrações
Como reconheceu o ministro da Economia, Paulo Guedes, a quem ambos eram subordinados, a "debandada" de Mattar e Uebel não ocorre por acaso e é resultado de uma soma de frustrações, reflexo da falta de empenho do próprio Bolsonaro em encaminhar as privatizações prometidas e enviar para o Congresso a proposta de reforma administrativa. Os dois chegaram ao governo como símbolos do aceno liberalizante e renovador, mas despertaram para o fato de que seus esforços pareciam cada vez mais fora de sintonia com os desejos reais do Planalto e de parte do núcleo central do governo. Como disse Guedes, esse é um ritmo ditado pelo presidente. E o chefe máximo na nação segue sendo o que sempre foi: um representante da política miúda, mais interessado em pautas secundárias e defensor de posições corporativistas que, ao fim, tentam apenas extrair mais e mais benefícios dos cofres públicos, pouco importando se o país está à míngua. A pressão para aumentar desembolsos de olho na reeleição, com risco de fazer desmoronar o teto de gastos, o que pode levar o Brasil para o caos do descontrole das finanças públicas, inflação e elevação do juro, também é indício de que a fantasia liberal foi rasgada e dá de novo lugar ao figurino original populista, que sempre caiu melhor em Bolsonaro.
No discurso de candidato e vez por outra, de acordo com a circunstância, Bolsonaro se alinhou às correntes que promoveram, nos anos 1980, revoluções nas economias dos Estados Unidos, sob Ronald Reagan, e no Reino Unido, com Margaret Thatcher. Mas, na prática, o presidente tem comportamento tão estatizante e personalista como tantos representantes da velha esquerda latino-americana. Após um ano e sete meses, o governo não privatizou nenhuma estatal. Vendeu apenas braços de empresas controladas e, ao contrário, ainda criou uma companhia pública responsável pelo controle do espaço aéreo do Brasil.
Sitiado pelas denúncias que cercam a primeira-família, Bolsonaro deixou descascar o verniz liberal e retornou às suas origens, visando apenas proteger a si mesmo, filhos e amigos enrolados. O combate implacável à corrupção, outra bandeira de campanha, também ficou pelo caminho. O presidente cooptou o centrão com cargos e verbas e, agora, gozando de um respiro da queda da popularidade pelo auxílio emergencial, é cada vez mais tentado a abrir as torneiras dos gastos, mesmo à custa do risco de uma séria desestabilização econômica do país. Ao mesmo tempo, despreza a necessidade de mexer em benefícios exagerados da camada mais bem paga do funcionalismo público e pedala o cronograma da indispensável reforma administrativa, que era para ser enviada ao Congresso ainda em 2019 e, agora, ficou para 2021. Além de gerar eficiência no serviço público, a proposta é importante por ajudar o ajuste nas contas pelo lado das despesas. Mas o presidente resiste e, na contramão, chega a falar em aumento para o funcionalismo, tudo em nome de sua sobrevivência política.
Como outros colaboradores da equipe de Guedes de viés genuinamente liberal, Mattar e Uebel deram-se conta de que haviam se tornado apenas personagens decorativos de um governo falsamente modernizador. Estavam emprestando seus nomes e prestígios a um embuste.