A História deverá registrar que, no dia em que a taxa de ocupação de UTIs por coronavírus em Porto Alegre atingiu novo e preocupante recorde, sua Câmara Municipal dedicou-se a votar e aprovar por larga maioria a possibilidade de interromper o mandato do prefeito e, por consequência, a cadeia de comando no combate à maior ameaça sanitária em um século. Às vésperas da campanha eleitoral, a aceitação da hipótese de abertura de um processo de impeachment na Capital serviu ao menos para simbolizar as distorções de foco em parlamentos municipais perdidos sobre o que e como fazer para amenizar a tragédia sanitária que se abate sobre milhões de brasileiros.
A vulgarização de pedidos de impeachment drena a atenção da sociedade em meio a sua maior e mais difícil guerra sanitária
A visão embaçada da Câmara porto-alegrense sobre o que de fato é relevante para a sociedade neste triste momento não é uma exclusividade da capital gaúcha. A proximidade das eleições acelerou em muitos municípios a explosiva mistura de oportunismo político com as muitas pressões, de todos os lados, sobre o gerenciamento da crise de saúde e econômica. No caso de Porto Alegre, o pedido de impeachment versa sobre o suposto uso irregular de verbas do Fundo de Saúde em publicidade, um tema que de resto já vem sendo examinado pelo Ministério Público de Contas, mas a consequência imediata é o desgaste e o desvio de energia da prefeitura no momento mais crítico da pandemia na cidade.
Noves fora a dificuldade de Nelson Marchezan de se relacionar com a Câmara e formar uma sólida base de apoio, a vulgarização de pedidos de impeachment Brasil afora se converteu em uma sucessão de manobras diversionistas que drenam a atenção da sociedade em meio a sua maior e mais difícil guerra sanitária. E dificilmente algum país, Estado ou cidade vai lograr sucesso no combate ao coronavírus se estiver dividido e conflagrado por infindáveis e irresponsáveis batalhas políticas. Porto Alegre até agora vem conseguindo manter um razoável nível de administração da doença mas vive seu alerta máximo. Na quarta-feira, por exemplo, uma fotografia da UTI do Hospital de Clínicas distribuída em todo o mundo por uma agência internacional de notícias ilustrava a condição de Porto Alegre como um dos epicentros da doença no planeta.
Pelos mesmos princípios de sensatez, ainda que o presidente da República possa ser considerado um dos piores gestores mundiais no enfrentamento do coronavírus, são um despropósito no momento as dezenas de pedidos de impeachment contra Jair Bolsonaro que ocupam os escaninhos da Câmara Federal. Em Brasília, porém, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, tem o discernimento de não levar os pedidos a plenário, o que seria um atentado contra o foco absoluto no combate aos efeitos da pandemia.
Até agora são pálidas as contribuições de muitas Câmaras Municipais para mitigar os dramáticos efeitos da emergência na saúde. A inação não se deve a falta do que fazer. Em Porto Alegre, como em tantos outros municípios, as necessárias reformas na estrutura municipal e nas contas públicas, que já eram muito relevantes antes da pandemia, tornam-se daqui em diante mandatórias, sob pena de quebra dos cofres públicos pela brutal perda de arrecadação e da previsível deterioração de serviços. Se as Câmaras de Vereadores querem deixar sua marca na História no lado de quem combateu a epidemia, que seja na construção de um legado que permita aos próximos gestores dar início efetivo ao trabalho de reconstrução de prefeituras e cidades devastadas pela covid-19.