As evidências são cada vez mais cristalinas. De liberal, o governo Bolsonaro tem muito mais discurso do que a prática. Após um início que parecia promissor, com medidas desburocratizantes e que buscavam facilitar negócios, como a Lei da Liberdade Econômica, o Planalto travou. Apesar do reiterado otimismo muitas vezes exagerado do ministro da Economia, Paulo Guedes, se solidifica a percepção de que falta um verdadeiro engajamento do presidente Jair Bolsonaro em temas como privatizações, enfrentamento de privilégios de corporações e envio de uma proposta de reforma administrativa para o Congresso.
As privatizações se resumiram a controladas e subsidiárias das maiores estatais, além de participações acionárias, sem deslanchar a alienação das maiores empresas públicas
A promessa de desestatização é um símbolo desta frustração. Guedes, no início do governo, acenava com R$ 1 trilhão em venda de ativos, mas até a chegada de 2020, o resultado foi inferior a R$ 100 bilhões, e as privatizações se resumiram a controladas e subsidiárias das maiores estatais, além de participações acionárias, sem de fato deslanchar a alienação das maiores empresas públicas. Há menos de um mês, Guedes prometeu, para um prazo de até 90 dias, "três ou quatro" grandes privatizações, algo que até agora não há sequer rastro e talvez nem o ministro sinceramente acredite.
Levantamento do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) feito a pedido do jornal Folha de S.Paulo mostrou que, atualmente, apenas 18 das 614 estatais fazem parte da lista de privatizações do governo, mas nenhum processo está de fato estruturado. Ou seja, muito distante de uma efetiva venda à iniciativa privada. O resultado do ano passado muito abaixo do esperado, ressalte-se, foi admitido pelo próprio secretário especial de Desestatização, Salim Mattar. A crise do coronavírus de fato afeta o apetite de possíveis interessados e deprecia o preço dos ativos, mas este poderia ser um tempo precioso a ser empregado em etapas anteriores à oferta no mercado. Quase nada foi feito. E, ao contrário, o governo Bolsonaro criou uma estatal ano passado, a NAV Brasil, e ainda injetou R$ 7,6 bilhões na Emgepron, empresa da Marinha.
A intenção de levar a cabo ao menos a privatização da Eletrobras, por meio de uma diluição da participação da União que poderia ocorrer com uma capitalização, trava por interesses políticos. Ou seja, o Planalto está na realidade preso aos grilhões do toma lá dá cá, sem poder ou verdadeira disposição para levar o processo adiante. Na prática, se dobra aos discursos demagógicos e populistas voltados apenas para arrebanhar votos fáceis nas urnas e a práticas que visam à acomodação de aliados. A venda de companhias como a própria Eletrobras, os Correios e a Casa da Moeda precisa passar pelo Congresso, mas a resistência de parlamentares, especialmente no caso da elétrica, e a desarticulação política do Planalto não inspiram esperança de que possam ter desfecho em breve.
É preciso admitir que diversos ativos encontram pouco interesse de investidores. A estes, é preciso encontrar outro caminho, como a pura e simples liquidação se seus custos são muito maiores do que os benefícios que trazem à sociedade. Ao menos, de alguma forma caminham de forma razoável os projetos de concessões, como rodovias e portos, estes sim atrativos pela certeza da receita que vão gerar, ainda mais em um país que clama por uma melhora substancial em sua infraestrutura. A maior parte dos projetos, porém, ainda é da carteira montada pelo governo Michel Temer.
Enquanto a proposta de reforma administrativa, essencial para racionalizar gastos e melhorar a produtividade do setor público, dormita em alguma gaveta do Planalto, levantamento do portal Poder 360 indica que, nos últimos 20 anos, o gasto com o funcionalismo federal subiu mais do que o dobro da inflação. Enquanto se aguardava uma proposta de reforma tributária abrangente, o governo acena com uma ideia tímida e ainda tenta ressuscitar uma CPMF repaginada. A abertura comercial e o fim de uma série de desonerações setoriais, da mesma forma, ficaram na promessa. A tentação para burlar o teto de gastos para aumentar despesas, sintoma de impulsos populistas, parece a cada dia maior. Aos poucos, a pregação liberal se transforma apenas em ilusórias palavras ao vento que pouco encontram amparo nas ações efetivas do Planalto.