Por Eurico de Andrade Neves Borba, ex-professor da PUC RIO e ex-presidente do IBGE.
Não poderia deixar passar 2019 sem externar minha grande preocupação com a crise global que afeta a todos nós. É preciso enfrentar, com coragem e honestidade intelectual, a questão do papel e funções do Estado na promoção do bem comum.
O sistema liberal capitalista, orientado pelas sinalizações do livre mercado, quase sempre movido pela ganância e pelo pensamento individualista, age para atender a demanda de bens e serviços e assim organiza o funcionamento da maioria das sociedades. No entanto, o referido sistema, responsável pelas maravilhosas conquistas da humanidade, em todas as áreas do agir humano, é também o responsável pela miséria e a opressão politica que se espalha por todo o planeta.
O comunismo dirigista, ateu, inibidor da liberdade, proprietário do sistema produtivo e distributivo, não funcionou no atendimento das aspirações humanas e é uma experiência politica ultrapassada, após décadas de ação extremamente ditatorial, desrespeitando os direitos humanos.
A socialdemocracia avançou bastante nos países nórdicos, na promoção do bem comum, mas esgotou suas possibilidades de revolucionar, pelo voto livre dos parlamentos – "o supremo poder" – as formas de operar as sociedades, face as velozes transformações tecnológicas e o descaso das novas gerações para com as responsabilidades solidarias que o necessário viver coletivo impõe.
O cansaço cívico e a apatia moral perante o poder politico se abate sobre as populações de todo o mundo, sem reação organizada, como se a resolução das questões existenciais e sociais se resumisse na contemplação do atual desastre do Humanismo e da progressiva impossibilidade de comunicação entre as pessoas.
A Doutrina Social da Igreja Católica – "perita em humanidade" – um repositório de preciosas reflexões sobre a sociedade e a organização do necessário viver coletivo, é desconhecida pela quase totalidade dos cristãos, numa atitude irresponsável de omissão perante o quadro de crescentes injustiças sociais, que se manifestam em todo o mundo. A Civilização Ocidental, hoje paradigma para todas as demais regiões do planeta, construiu suas estruturas sociais, politicas, econômicas e jurídicas sobre o pensamento greco-judaico-cristão, e tal legado parece que vai se perdendo nos desvãos das sociedades culturalmente fragilizadas e na trepidante e irreflexiva vida contemporânea.
A questão central da politica continua em aberto desde o sec. XIX: Qual o papel do Estado no atendimento das necessidades básicas dos povos? Quais os limites de sua ingerência na organização das sociedades de tal forma que garanta a justiça social e os direitos inalienáveis dos cidadãos? Certamente a democracia deverá ser preservada, com o aperfeiçoamento dos mecanismos de eleição de legítimos e competentes representantes dos povos. Igualmente, caberá ao Estado a garantia de um meio ambiente sadio de tal forma que se possa afastar, com urgência, as ameaças de desastres com inimagináveis consequências, como os que já estão sendo provocados pelo aquecimento da atmosfera e pela progressiva escassez de água potável. Também é inegável responsabilidade do Estado criar as condições necessárias para a geração de empregos para todos e providenciar, por meio de politicas publicas adequadas, a diminuição dos desníveis de renda, que humilham milhões de pessoas destruindo suas expectativas e sonhos de vida. Não deve pairar duvida de que é papel do Estado garantir sistemas de educação de qualidade para todos, como a única forma de ser ter efetiva igualdade de condições de trabalho na vida coletiva, fortalecendo a virtude da solidariedade como principal fundamento da inescapável vida em comum nas sociedades democráticas.
Os donos do poder, a classe dominante, que cada vez mais se fortalece com o uso dos mecanismos de ação que lhe são característicos, como o uso intensivo da mídia e agora com o uso da moderna tecnologia da IA, (inteligência artificial), mantem as atuais estruturas de dominação politica, com a argumentação que operam o mais eficiente e o mais justo sistema de funcionamento das sociedades – o liberal capitalismo. Apontam os que pretendem alertar para os erros que estão sendo cometidos como comunistas ou anarquistas retrógrados, perturbadores da ordem. Por sua vez a chamada "esquerda", depois da queda da União Soviética (1989), continua sem saber o que fazer e prossegue na divulgação de soluções pouco eficientes e totalmente impossíveis de serem implantadas por uma população anestesiada e não preparada para o desenvolvimento de um pensamento critico apropriado ao renascimento do Humanismo Integral – a prevalência da dignidade das pessoas no processo histórico.
O risco, se tudo permanecer como está, fato que poucos percebem, é a eclosão de um enorme e irreprimível confronto entre os que cada vez possuem menos, inclusive a possibilidade de empregos e de sonhos, e os poucos que cada vez possuem mais da riqueza gerada e do poder, sem que as lideranças politicas atuais apresentem alternativas para a situação de miséria e injustiça crescentes, com a construção de uma nova ordem social e politica que garanta a liberdade, a justiça social, a paz e a solidariedade para a maioria das pessoas, em todo o planeta. Não é tarefa fácil de ser realizada, mas é uma necessidade evidente, se quisermos continuar a existir.