Por Manoel Soares, comunicador
A fome é a primeira solidão íntima que conhecemos. Ela nos exila em um estado primitivo em que qualquer outro acordo social perde a validade.
Essa noite, meu bebê de 11 meses acordou chorando, enfurecido. Enquanto eu ia fazer a mamadeira, minha preta tentou acalmar ele com carinho, beijo, cantando, mas ele só gritava. Era como se todo nosso amor e afeto não fizesse sentido nenhum para ele, era assustador ver como aquele instante de fome o isolava do mundo. Somente depois que sentiu o leite nas papilas gustativas é que nos olhou nos olhos, mas a fome parecia ter roubado a graça e beleza dele, a substituindo por uma fúria animalesca. Isso é o que a fome pode fazer com qualquer um, inclusive com você, que está lendo.
Muito antes de meu bebê nascer, em 1992 minha mãe era gari, eu tinha 12 anos e, como qualquer pré-adolescente, sentia uma fome descomunal. Deve ser por isso que muitos de meus colegas cheiravam cola, ela tirava a fome. O cheiro da cola me dava dor de cabeça, mas minha paixão era xis salada. O pouco dinheiro da nossa família era divido entre aluguel, roupa e comida, sobrava pouco para essas firulas alimentares.
Na volta da escola, um dia, como de costume, parei numa lanchonete de rua onde os jovens da minha comunidade se juntavam. Geralmente eu ia ali para que alguém me desse um pedaço de seu xis, na camaradagem. Neste dia em especial fui ridicularizado por não ter dinheiro para comprar o xis. Um traficante, conhecido da rua, mandou todos pararem de rir de mim e comprou um lanche para mim. Foi a primeira vez que comi um daqueles sozinho. Desse dia em diante ele era meu ídolo, isso porque matou minha fome de comer e de existir naquele momento. Como ele muitos traficantes estão matando a fome nos becos invisíveis de nosso Estado e assim virando ídolos também.
Quando a fome mora no corpo de quem amamos, sejam filhos ou pais, tudo que lemos aqui nesse texto vai para um expoente avassalador. Ter a fome de volta na rotina dos brasileiros é convidar uma parcela significativa da população a romper barreiras de civilidade e a redefinir relações a partir dessa necessidade.
Quem matar minha fome é meu amigo, enquanto estou com ela não sou amigo de ninguém. Com fome tenho que ir à luta mas, em um país de 13 milhões de desempregados, muitos precisam pedir, implorar e se humilhar. Porém, quando isso não é suficiente, outros roubam, matam e morrem. Óbvio que bandidos não cometem crimes para comer, mas quando existe a fome, ela é o argumento nobre para a quebra desses códigos sociais que levam ao crime também. Sentir fome é normal, mas passar fome é um sintoma da crueldade coletiva e ela está de volta.