Num gesto de bom senso e racionalidade, o presidente Jair Bolsonaro desistiu de participar pessoalmente das manifestações que parte de seus apoiadores está organizando para o próximo domingo em diferentes cidades do país. Contanto que pacíficas e realizadas em locais e horários previamente combinados com as autoridades, manifestações em si não devem embutir nenhuma outra restrição. Fosse uma enorme convocação para demonstrar amplo apoio popular ao fundamental projeto de reforma da Previdência, o domingo poderia até produzir um efeito salutar para pressionar deputados reticentes em admitir que as contas públicas estão em frangalhos.
O problema que se avizinha para a imagem do governo Bolsonaro é que surgiram sinais de que os manifestantes incluiriam, sob o verniz de apoio à pauta do governo, o clamor pelo fechamento do Congresso e da Suprema Corte. Por mais defeitos que Congresso e Judiciário tenham – e todos os poderes, incluindo o Executivo, os têm –, não pode haver espaço no Brasil de hoje para quem quer que tenha responsabilidade política endossar mobilizações que proponham a eliminação de pilares do regime democrático.
Vozes lúcidas da base do presidente advertiram-no para o risco de cair em uma armadilha
Estimulado pela ala mais delirante e fanática do bolsonarismo, o presidente chegou a dar indicações de que pretendia se valer do golpe mais baixo e arriscado de regimes populistas: governar diretamente com o povo, sempre na doce ilusão de que aqueles que o apoiam eventualmente são o povo. É o que imagina, por exemplo, o regime de Nicolás Maduro, que se mantém no poder na Venezuela graças à gradual destruição das instituições da democracia, o que inclui uma imprensa livre e forte, e o estabelecimento de uma relação de toma lá dá cá com generais para controlar as forças armadas.
Em sua história, a América Latina está repleta de líderes messiânicos que, em dado momento, procuraram desprezar Congresso, Judiciário e vozes independentes, tanto nas universidades quanto na imprensa. Nenhuma dessas aventuras terminou bem. Os caudilhos, sejam de esquerda, sejam de direita, inevitavelmente arrastam seus países para o totalitarismo, o caos econômico e a corrupção, como, aliás, se viu no Peru de Fujimori e na Venezuela de Chávez.
Vozes lúcidas da base do presidente advertiram-no para o risco de cair em uma armadilha na já difícil relação com o Congresso. Quando boa parte dos movimentos e políticos que deram eco e apoio a Bolsonaro condenou abertamente as manifestações de domingo, o alerta vermelho se acendeu no Palácio do Planalto. Pode até seguir havendo simpatia pelas causas mais radicais em alguns cantos da Esplanada dos Ministérios, mas pelo menos a ausência física do presidente deverá evitar cenas de provocação explícita a um Congresso no qual pontificam as dificuldades de relacionamento do governo, a começar por um líder na Câmara que distribui memes do presidente da Casa e sequer é recebido por ele.
Na origem, faz todo o sentido o discurso do bolsonarismo de condenação à fisiologia e às práticas imorais com deputados e senadores que fizeram apodrecer presidências recentes. Mas ele não deve jamais se confundir com o horror à política, que é a arte de se chegar, pelo diálogo e respeito a contrários, a denominadores comuns que dão sustentação ao projeto de nação.