Nada mais difícil para um cidadão do que tentar saber ou entender o que estão fazendo seus governantes. Sempre vivemos de sinais distantes: um pronunciamento aqui, uma reportagem investigativa ali, uma inauguração de obra acolá e assim íamos colando as peças da história. A internet parecia que ia permitir uma nova era de transparência, na qual poderíamos acompanhar em tempo real o que os governos fazem, bem como interferir de forma mais direta. Mas, na prática, tudo continua muito fragmentado e opaco e seguimos alienados do poder público.
Porto Alegre é exemplar nesse sentido. A cidade que já foi referência mundial pela criação do Orçamento Participativo hoje sofre com a gestão de um prefeito de objetivos e ações impenetráveis, que não se comunica com a população e que aproveita quase toda aparição pública para falar mal de algum segmento que não esteja 100% fechado com sua linha de governo.
Marchezan foi eleito na onda da “nova política”, essa política de inspiração da gestão privada (como se fosse um conceito único, como se todas as empresas fossem geridas da mesma maneira) que colocou em evidência políticos que, nas propostas, no discurso e na estética se aproximam de um tipo de gestor privado contemporâneo. Quando ouvimos um Marchezan ou, em São Paulo, um Dória Jr. falando, eles muitas vezes soam como um CEO em uma sala de reuniões que propõe que tudo vai dar certo se todos seguirem seu caminho em meio ao deserto – o CEO da terra prometida. Em 25 anos trabalhando na iniciativa privada, já tive a oportunidade de ver alguns assim operando. Mas isso é só uma das formas de gestão. Não é a única e nem sempre a mais eficaz.
Essa “nova política”, inspirada nessa ideia planificada de gestão privada, lembra bastante o mote do Facebook, “Move fast and break things”. A frase que guiou muitas das decisões de Mark Zuckerberg diz respeito a uma atitude de gestão que atropela tradições, verdades prontas, pessoas e leis com a justificativa de que a velocidade da genialidade não pode ser travada por tradições, verdades prontas, pessoas ou leis. “Move fast and break things” nos convoca a baixar a cabeça para os supostos gênios e aceitar que eles estão enxergando um futuro melhor para todos – nós é que não somos inteligentes o suficiente para ver o caminho que eles estão desenhando.
Mas o recente escândalo de uso indevido de dados de 87 milhões de usuários do Facebook está mostrando um dos possíveis resultados de se botar fé demais no “Move fast and break things”. A falta de responsabilidade do Facebook com nossos dados, sua cegueira para o uso indevido deles, mostra o quão perigoso é a fé cega em autoabençoados gênios que querem nossa confiança para “ir rápido enquanto quebram coisas” mas que não conseguem se explicar direito quando algo importante – como a privacidade – é quebrado.
Da mesma forma, quando políticos se fecham em bolhas de gestão ditas modernas, eles parecem agir segundo a cartilha “Move fast and break things”: vão rápido, atropelando secretários, imprensa, parlamento, entidades de classe, sugerindo que todos estes não estão à altura de suas visões, como se não fosse papel de um gestor de qualidade compartilhar sua visão e cativar as pessoas em torno dela. Impor sua visão sobre todos não é coisa de gestor, é coisa de líderes totalitários. Em uma empresa privada, isso não é recomendável, mas pode até ser aceitável. Em uma instituição pública, tamanha arrogância e falta de transparência são inaceitáveis. Tanto do ponto de vista conceitual (um governo não é uma empresa) quanto prático (vide o que acabou de acontecer com o Facebook).
O escândalo dos dados do Facebook só é uma surpresa para quem não acompanha a imprensa especializada de tecnologia. Há anos os problemas de privacidade e a arrogância do Facebook vêm sendo denunciados por jornalistas, pesquisadores e ativistas.
Mas todo esforço de obter uma mínima declaração ou ação de responsabilidade foi encarado como uma tentativa de “parar o progresso”. É algo parecido ao que aconteceu com os ecologistas nos anos 1970 e 80: eram considerados loucos viajandões até quando os problemas ambientais se tornaram grandes demais para serem ignorados. Aí toda empresa criou sua área de sustentabilidade.
O mesmo estamos vendo acontecer em Porto Alegre. O prefeito tem a obrigação legal e moral de se reportar de maneira transparente e decente a toda a cidade (e não só aos seus), mas com frequência acontece de se fechar em declarações bélicas contra tudo e todos que tentam obter dele a atitude que se espera de um gestor público – uma declaração de visão, os planos para implementar essa visão, o andamento desse plano e, acima de tudo, a disposição de dialogar sobre esse plano com aqueles que não pensam igual a ele.
Porto Alegre não é o Facebook. Ou pelo menos, esperamos que o prefeito não veja a cidade assim.