O Uruguai vai às urnas no dia 27 de outubro para eleger o sucessor de Luis Lacalle Pou, do Partido Nacional. O político de centro-direita governou por cinco anos após três mandatos consecutivos da Frente Ampla, de esquerda (2005 a 2020).
Como a Constituição proíbe a reeleição imediata, o atual mandatário não poderá concorrer novamente neste ano. Os ex-presidentes ainda vivos estão afastados da vida pública.
O cenário forçou uma renovação na política local. Os três principais candidatos têm menos de 60 anos: Álvaro Delgado (Partido Nacional, 55 anos), Yamandú Orsi (Frente Ampla, 57 anos) e Andrés Ojeda (Partido Colorado, 40 anos).
Em entrevista a ZH, o historiador Gerardo Caetano fala sobre o cenário eleitoral, renovação na política, Mercosul e os principais desafios do futuro governo.
Como está desenhado o cenário para as eleições deste ano no Uruguai?
Sobretudo a partir de 2019, quando entrou o novo governo de coalizão, a competência política em Uruguai está desenhada em torno de dois grandes espaços. De um lado está a Frente Ampla, que na ultima eleição obteve 38% do eleitorado, a primeira força política do país desde 1999, mas que caiu nove pontos com relação à eleição de 2014. E do outro lado, outro espaço político formado pela chamada Coalizão Multicolor. É uma coalizão formada pelo Partido Nacional, líder da coalizão, o Partido Colorado, um novo partido que se fundou em 2019, de referência militar, que é o Cabildo Abierto, e depois dois partidos muito pequenos. Esta coalizão, em seu conjunto, ganhou (em 2020), no entanto, por uma diferença mínima de 1,5%.
Quais serão os principais desafios do próximo presidente?
Em primeiro lugar, o tema que mais preocupa os uruguaios é a segurança. E este tema tem múltiplas arestas. Por um lado, o narcotráfico cresceu em sua penetração no Uruguai, o que é um fenômeno muito impactante para a sociedade uruguaia. E a sociedade uruguaia não conseguiu resolver esse tema. Mas também tem índices de assassinatos que estão altos, e tem, em geral, uma situação de segurança complexa. De tal modo que se justifica que o principal tema de preocupação seja a segurança.
Há outros temas, como, por exemplo, o Uruguai cresceu, mas muito pouco. Em terceiro lugar, aumentou a desigualdade. Não só por causa do impacto de distintas crises, como a crise da pandemia, ou também por causa da seca e da inflação importada da guerra na Ucrânia, etc. A economia não cresce o suficiente, mas a inflação é mais ou menos controlada. Embora com um déficit fiscal, que era um problema no fim do governo frenteamplista, e continua sendo um problema agora, inclusive em alguns aspectos mais graves. Um dos fracassos deste governo é não ter podido abater o déficit fiscal. Isso se traduz em um aumento da desigualdade.
O governo afirma que o salário médio aumentou na comparação com 2019. Mas o que as pesquisas revelam é que aumentou nos 5% mais ricos da população.
GERARDO CAETANO
Historiador
Enquanto que no resto, o salário caiu, sobretudo entre os 90% mais pobres.
Por outro lado, há uma infantilização da pobreza grave. Há mais de 20% de pobres, entre meninos, meninas e adolescentes. Enquanto que, em geral, a pobreza é de 10%. Ou seja, a pobreza infantil duplica a média da pobreza da população. Tem havido uma transformação educativa, mas que deixou problemas importantes. Não foi satisfatório.
O quarto desafio poderia ser abater o déficit fiscal, como foi anunciado e não foi alcançado, e obter um maior nível de competitividade em uma economia que é muito cara em dólares. Há um atraso cambial muito importante. Em dólares, é um dos países mais caros, se não o mais caro da região. E isso gera uma crise de competitividade importante.
Você poderia adicionar outros problemas. O Uruguai é um país muito envelhecido. Então, o tema dos cuidados é muito relevante e está se resolvendo mal.
Nos últimos três anos morreram mais uruguaios do que nasceram.
GERARDO CAETANO
Historiador
Com isso, a população está, primeiro, aumentando seu envelhecimento, mas, ao mesmo tempo, está decrescendo em termos absolutos. E isso gera situações em que, unido a uma taxa de natalidade baixa, mas a uma taxa de sobrevida alta, gera problemas de cuidado, sobretudo para a terceira idade, muito graves.
A isso, você poderia adicionar alguns problemas mais ou menos clássicos. O problema ambiental é um problema severo. Mas esses seriam os principais desafios.
Há outro desafio que tem a ver com o que eu disse, mas que é objeto de uma proposta de referendo. Há uma lei de seguridade social que foi impugnada pelo movimento sindical. É difícil que saia a reforma da seguridade social. Mas, obviamente, se sair ou não sair, a reforma que se conseguiu durante o período não é satisfatória nem para um, nem para outro. E é uma reforma que, em pouco tempo, vai ter que ser reformada, mesmo que não prospere a reforma constitucional a seu caminho.
Como você avalia o nível desta campanha eleitoral? Os candidatos estão conseguindo apresentar propostas a estes problemas?
É uma campanha com um nível baixo, tanto em mobilização, quanto a nível dos candidatos ou a nível do entusiasmo popular. Faltam seis semanas para as eleições (a entrevista foi feita no dia 16 de setembro) e, efetivamente, sobretudo em Montevidéu, a nível geral, pode-se dizer que a campanha é fria, que não gerou uma mobilização eleitoral massiva e que a maioria da população uruguaia sinaliza um desdém em relação à eleição. É bastante notório em relação às eleições anteriores.
A que você atribui isso?
Bom, há vários motivos. O desgaste da política, se bem que no Uruguai não é tão grave quanto em outros países, existe.
Mas, por outra parte, os candidatos não parecem satisfazer as expectativas da população uruguaia. Isso levou a uma certa apatia.
GERARDO CAETANO
Historiador
Também é certo que este governo teve vários episódios de corrupção, os quais ainda estão em processo judicial, mas alimentaram um pouco essa crise política. Alguém diria que isso aumentaria as chances da oposição. E é verdade. Hoje, se você acreditar nas pesquisas, o favorito para ganhar a eleição parece ser a Frente Ampla. Depois se confirmará ou não, no dia das eleições.
Mas, até mesmo há o paradoxo de que o presidente mantém um nível de aprovação pessoal alto. Não inédito, mas alto. Há um nível de aprovação de 49%. E, no entanto, não transfere esse nível de aprovação em votos para seu partido. O Partido Nacional, nas últimas pesquisas, está em 22%, 25%, e até mesmo a coalizão em seu conjunto está entre seis e três pontos abaixo da Frente Ampla. De modo que também há insatisfação a esse respeito. A verdade é que, por essas e outras causas, a campanha atual é uma campanha fria em vários sentidos.
O atual presidente não pode concorrer, e os ex-presidentes já estão afastados da vida pública. Os principais candidatos têm menos de 60 anos. É um momento de renovação na política uruguaia?
Certamente. Tínhamos uma liderança muito envelhecida nos diferentes partidos. A Frente Ampla estava conformada com Tabaré Vázquez (ex-presidente) e (Danilo) Astori (ex-vice), que faleceram nos últimos anos e tinham mais de 80 anos. E ainda vive José Mujica, que em maio deste ano completou 89 anos. Inclusive está doente, com câncer. Mas são lideranças que se somam às lideranças tradicionais dos ex-presidentes. O doutor (Julio Maria) Sanguinetti tem 88 anos. O doutor (Luis Alberto) Lacalle Herrera tem 82 anos.
Digamos, a própria idade está levando a uma renovação forçada da política uruguaia.
GERARDO CAETANO
Historiador
E, efetivamente, você tem candidatos, nos casos dos três principais partidos, a Frente Ampla, o Partido Nacional e o Partido Colorado, que têm candidatos relativamente jovens, abaixo de 60, "cinquentões", Orsi e Delgado, da Frente Ampla e do Partido Nacional, e com 40 anos, o jovem Andrés Ojeda. Digo jovem porque, para a média de idade no Uruguai, um candidato com 40 anos é um candidato muito jovem, apesar de que, formalmente, ele não esteja na juventude. Isso impulsou uma renovação, não há dúvidas.
Os partidos menores, que não parecem alentar uma grande votação, estou falando de Cabildo Abierto ou do Partido Independente, vão repetir seus candidatos de 2019. Mas a Frente Ampla, com Orsi, o Partido Nacional, com Delgado, e o Partido Colorado, com Ojeda, são candidatos que, pela primeira vez, competem pela presidência da República. Então, forçosamente, há uma renovação. E nas listas ao Parlamento também se vê uma renovação importante, no sentido de que há toda uma elite política que chegou a estar presente até 2019 e agora já tem demasiada idade e não aparece nas eleições.
De modo que, efetivamente, nós temos uma política de renovação, o que também se traduz em uma crise de liderança, porque os antigos líderes, mesmo aqueles que vivem, estão muito velhos. O político mais popular do Uruguai e o único líder que ainda sobrevive na Frente Ampla é José Mujica. Ele tem (quase) 90 anos. O último líder do Partido Colorado, que até março deste ano foi seu secretário-general, é o doutor Julio Maria Sanguinetti, mas Sanguinetti, em janeiro, completará 89 anos.
De modo que há uma renovação, isso se vê nos candidatos, mas também se vê nas lideranças, porque, alguém diria, a única liderança visível de alguém jovem, ou de alguém mais jovem, é a liderança do presidente Lacalle Pou, que, nestes cinco anos, firmou uma liderança, e tem 51 anos de idade. E ficou com o partido, vai ser o primeiro candidato ao Senado, não pode ser reeleito presidente, é o primeiro candidato ao Senado de todas as listas partidárias do Partido Nacional, o que nunca tinha acontecido. Mas, se se vê apenas partidos, bem, não há lideranças.
Nem no Partido Colorado, nem na Frente Ampla, ainda não se construíram lideranças alternativas que sucedam aos líderes envelhecidos.
GERARDO CAETANO
Historiador
No Uruguai é mais difícil que um outsider tenha êxito?
Tradicionalmente tem sido raro. Os outsiders no Uruguai, sobretudo quando são candidatos presidenciais, em geral não são bem votados. De toda maneira, um novo partido nasceu em 2019, Cabildo Abierto. Esse partido era um partido de referência militar, em que emergia, surpreendentemente, não somente um partido de referência militar, como nunca havia havido, mas um partido com perfis de ultradireita, que, além disso, tinha como candidato à presidência da República quem havia sido comandante do exército até março de 2019 (Guido Manini Ríos). E obteve uma votação razoável, de 11%. Hoje, as pesquisas estão marcando um descenso visível do Cabildo Abierto e de Manini Ríos, com o qual sua dimensão de outsider, primeiro, caiu. Há cinco anos que ele é político, ele foi senador nesses cinco anos, e hoje sua tendência eleitoral tende a decair, e a decair fortemente.
Há, sim, o que podemos chamar de outsiders, ou pessoas que fazem sua primeira experiência política e que se incorporaram à campanha de forma mais atrasada. Por exemplo, uma muito famosa jornalista uruguaia, Blanca Rodriguez, se juntou à campanha da Frente Ampla em agosto, e é a segunda candidata do grupo de Mujica. Bom, isso foi uma surpresa, e Blanca Rodriguez é uma pessoa que tem 65 anos e que até o momento nunca havia feito política partidária.
Há outros casos desse nível, mas nas candidaturas presidenciais, nessa eleição, há renovação, mas não há outsiders. Andrés Ojeda, por exemplo, mais jovem, 40 anos, tem 20 anos de militância no Partido Colorado, ou seja, não é um outsider. Por mais que não tenha tido cargos públicos de relevância, tem 20 anos de militância com ele, não é um outsider.
Como a ascensão da extrema direita tem refletido no Uruguai?
O Uruguai tradicionalmente tem sido um país que em termos de identificação ideológica da média de sua população se localiza do centro à esquerda. A tendência, como em geral no mundo, mudou e se uniu do centro para a direita. Mas, digamos, as expressões de extrema direita não tiveram uma implantação muito firme. Além disso tem muitos rastros de comparação com as extremas direitas, as direitas alternativas emergentes, neopatriotas.
O partido Cabildo Abierto é um partido liderado por quem havia sido, até março de 2019, o comandante-em-chefe do exército. É um partido que é antiglobalização, ou seja, tem essa proximidade com os partidos de extrema direita em geral. Não é uma direita tradicional no sentido de uma direita liberal pró-globalização, não. Ao contrário. Questiona a Agenda 2030, questiona as redes de governança internacional, nesse sentido, se parece muito com essas novas direitas antiglobalização. Poderíamos qualificar como neopatriotas. E, ao mesmo tempo, incorpora uma agenda bastante tradicional em matéria de nova agenda, que também se aproxima dos fenômenos de direitas emergentes.
Por exemplo, tem uma postura muito dura com respeito à chamada nova agenda de direitos, questiona o casamento igualitário, questiona a laicidade tradicional no Uruguai, questiona a legalização da venda de maconha, questiona toda a reivindicação da diversidade em termos de orientação sexual. Não é neoliberal em matéria econômica. Tem, mais ou menos, um perfil de direita estatista, ainda que, obviamente, tem apoiado um governo que, em matéria econômica, ainda com um certo pragmatismo, tem aplicado políticas liberais. Mas tem sido crítico com respeito à política econômica do atual governo, em particular com relação ao escasso apoio aos pequenos e médios proprietários, etc.
Mas podemos dizer que, nos formatos mais moderados do Uruguai, da política uruguaia tradicional, e com algumas particularidades, Cabildo Abierto, que também reivindica (a defesa dos) os militares que estão cumprindo pena por terem violentado os direitos humanos durante a ditadura, é como o espaço de ultradireita no Uruguai e tem muitos aspectos parecidos com essas direitas emergentes.
Vou dar um exemplo. Manini Ríos tinha um vínculo de apoio firme e até de conhecimento pessoal com Jair Bolsonaro, ao ponto de que, nas duas instâncias eleitorais, em 2018 e 2022, Guido Manini Ríos disse que ele, sem dúvida, votaria por Bolsonaro. No entanto, ele não tomou posição e marcou distância com respeito ao fenômeno (Javier) Milei (presidente da Argentina). Entre outras coisas, porque não compartilha essa visão do paleoliberalismo própria de Milei. Mas, efetivamente, foi em seu momento uma expressão rara no Uruguai dessa ultradireita neopatriota e emergente que caracteriza outros espaços da América Latina e do mundo.
Qual o impacto das redes sociais e das fake news nas eleições?
Ainda que tardiamente, chegou ao Uruguai essa política centrada na comunicação que maneja fake news e tem nas redes seu grande espaço. Inclusive, isso se associa com alguns estilos parlamentares que temos visto neste período, que são estilos muito estranhos à tradição uruguaia. Por exemplo, senadores e senadoras que usam as redes para atacar, e que manejam um estilo fortemente ofensivo em relação aos seus colegas no parlamento.
Isso, além disso, se inscreve em um partido, particularmente em um presidente, que tem apostado muito na política comunicacional. Eu diria que o aspecto que mais se pode ressaltar da liderança de Lacalle Pou é seu sucesso comunicacional. Ele é um grande comunicador. Não é o que podemos chamar de estadista, não é uma pessoa culta, mas é um grande comunicador. E ele tem apostado muito fortemente em ter em seu governo e em seu partido uma política comunicacional muito forte. Se você me perguntar qual é a política pública deste governo mais exitosa, eu diria que é a política comunicacional. E ele tem apostado muito, até o ponto que poderíamos dizer que esta nova política, que está se expandindo no mundo, chega tarde ao Uruguai, mas durante este governo chegou de forma forte, muito forte.
Como os uruguaios veem o futuro do Mercosul e da integração regional?
O Uruguai, até mesmo além dos estilos e dos governos, tem apostado em uma flexibilização do Mercosul. Nesse sentido, mesmo que Lacalle Pou tenha um estilo muito mais de confronto, não há diferenças tão importantes em matéria de visão do Mercosul, de visão crítica sobre o Mercosul, com relação aos governos frentistas anteriores, de Mujica e de Tabaré Vázquez. Por que isso acontece?
Bem, acontece no sentido de que o Uruguai, em muitos aspectos, ficou prisioneiro de um Mercosul que obviamente não é um mercado comum, nunca foi, mas que também não é uma união aduaneira. E vê um Mercosul que, por um lado, fura a tarifa externa comum, mas não permite ao Uruguai desenvolver tratados de livre comércio ou acordos comerciais se não for no marco da região. E a agenda externa do Mercosul tem sido uma agenda externa paupérrima. Nesse sentido, essa ideia de flexibilizar o Mercosul, habilitando o Uruguai, por exemplo, a fazer acordos comerciais que evitem pagar as obrigações que deve pagar em suas exportações para a China, por exemplo, é uma demanda que eu diria que hoje, não só a nível da população, mas a nível das direções partidárias e dos diplomatas de carreira, é compartilhada.
O Uruguai apostou muito no Mercosul, mas hoje tem uma visão cética a respeito porque, digamos, o Mercosul não avançou, não conseguiu cumprir o que existe no papel, não avançou na união aduaneira, não avançou na política de Estado comum, mais de uma vez até dificultou o livre comércio intrazona, de modo que, o que eu diria é que, em geral, a Frente Ampla tem uma visão mais pró-integracionista do que os outros partidos, mas hoje, pelas dificuldades que o Mercosul teve para avançar em acordos com potências extrazona, ou até mesmo para assegurar a zona de livre comércio regional, fez com que esse ceticismo seja basicamente compartilhado por todos os partidos, até mesmo pela esquerda.
De tal modo que, eu diria que, hoje, não está planteado por parte da esquerda, que é favorita, mas também dos outros partidos, mesmo que se mencione em alguns dos outros partidos, a ideia de romper com o Mercosul. Mas sim, o que é uma postura compartilhada é que o Mercosul tem que flexibilizar suas regras para o caso uruguaio. Essa demanda de maior flexibilização é uma demanda que, hoje, compartilham todos os partidos, além de que há críticos em cada um deles, mas basicamente é uma demanda compartilhada em todos os partidos.